A máquina do tempo: diversas maneiras de ser livro

A viagem de hoje começará por ser de quase dois mil anos na direcção do passado. Depois voltaremos ao presente. Neste ziguezaguear entre épocas, o tema será sempre o mesmo – o livro e algumas das formas sob as quais nos tem acompanhado. Talvez por deformação profissional, o anúncio mais antigo de que tenho conhecimento é precisamente feito a livros e diz assim:
Tu, que desejas levar contigo os meus livros para qualquer parte
e procuras tê-los como companhia de longa jornada,
compra aqueles em que o pergaminho fica apertado em pequenas tábuas.
Deixa as prateleiras para os grandes (livros), em mim segura com uma só mão.
Não deixes, porém, de saber onde estou à venda e não andes errante,
perdido pelo cidade toda; com a minha indicação estarás certo:
a seguir às portas da Paz e ao foro de Minerva.

É aquilo a que se pode chamar um spot publicitário dos finais do primeiro século da nossa era. Escreveu-o Marcial, um poeta latino, nascido na Península Ibérica, em Bilbilis, (c. de 40-104). A sua obra principal são os «Epigramas», poesias curtas e satíricas, tais como esta, muitas vezes citada: «Se a Glória vem depois da morte, não tenho pressa de a alcançar». No anúncio, além da oportuna informação sobre a localização da livraria, de notar a alusão à portabilidade do livro por oposição aos pesados rolos, e à acessibilidade do texto, bem como à maior resistência do pergaminho relativamente ao tradicional papiro. Só para termos uma ideia, quem quisesse possuir uma versão completa da Eneida teria de se haver com doze rolos (arrumados numa caixa pesada e de grandes dimensões). O códice de que Marcial faz a propaganda permitia arrumar todo o texto num volume. Um pouco, à escala da época, vantagens semelhantes às que hoje o kindle nos oferece relativamente ao livro impresso.

Na realidade, tal como actualmente ocorre na ameaça que o livro digital representa para a sobrevivência do livro impresso, as resistências eram muitas. Os bibliófilos da altura riam-se daquelas folhas de pergaminho apertadas entre duas tábuas – pois era lá possível que aquela geringonça ridícula substituísse os rolos, herdados da Grécia, que, durante séculos, foram o suporte da palavra escrita?
Terá sido Secundo, o editor de Marcial, quem lançou em Roma a nova forma de livro. Mas sem sucesso imediato. A reacção e a resistência à mudança foram mais fortes do que a evidência das vantagens. A adaptação progressiva à nova forma de livro iria demorar cerca de quatrocentos anos, vindo a consumar-se no decurso do século V, embora já durante o século III nas compilações jurídicas prevalecessem os códices. De certo modo, o mesmo que hoje se diz dos e-books e do kindle – «Ora! Isso é bom é para substituir enciclopédias, obras de referência…».
Não tenho dúvidas de que não demoraremos quatro séculos a acolher um suporte novo (que já não será o kindle, mas sim qualquer outra coisa que hoje não podemos sequer imaginar e que entretanto surgirá). Porque estas mudanças, como já anteriormente disse, fazem-se por pragmatismo e não por mera vontade de inovar. Pode mesmo dizer-se que a vontade de mudar radicalmente de suporte tem uma história de sistemática resistência a essa mudança – nunca foi fácil. Contudo, um das barreiras que se colocam a uma maior difusão do livro electrónico, é o pagamento de direitos a autores e editores. Problema que afecta também (talvez ainda mais) os compositores e as editoras discográficas. As pessoas, pelo menos a maioria delas, não têm a noção de que ir à Internet e imprimir um livro ou gravar uma canção é um acto de pirataria. No entanto, sabem que não devem roubar livros ou discos nas lojas.
Mas as coisas vão andando no sentido de os livros digitalizados se irem tornando um sistema honesto e respeitável, aceite por editores e autores. Já este mês de Setembro, a Google fez propostas de um acordo aos editores europeus relativamente ao respeito pelos direitos de autor. Nos Estados Unidos esse acordo entre a empresa que controla o motor de busca mais utilizado da Web e os representantes das outras partes interessadas já existe. Se o acordo se concretizar também no nosso continente, milhões de livros publicados na Europa, mas que já não se encontram disponíveis nas livrarias, poderão ser digitalizados e colocados em linha. Em Bruxelas, a Comissão Europeia convocou uma reunião para examinar o complexo mecanismo jurídico que a exploração electrónica de milhões de livros pressupõe. A função principal desse mecanismo seria a de regular a divisão do dinheiro gerado pelas vendas online – quanto desse dinheiro irá caber à Google, quanto ficará para autores e editores. Segundo a proposta, os editores e os autores ficarão com 63% e a Google com 37%.
Não vai ser fácil porque, como lembra a associação de Editores Italianos, a implantação do sistema iria violar vários pontos da Convenção de Berna sobre os Direitos de Autor. Mas encontrar uma solução que contemple os interesses de todos os envolvidos e que compatibilize o sistema com a Convenção, cuja primeira forma data de 1886, será apenas uma questão de tempo. Provavelmente com o sacrifício de princípios da Convenção, assinada há quase 150 anos, quando não era possível prever o rumo que o livro começaria a tomar na transição do século XX para o XXI.
Para terminar a nossa viagem de hoje, percorramos com este pequeno vídeo o caminho do livro desde a pré-história até aos nossos dias. O livro, nas suas diversas formas, tem sido um companheiro fiel. Talvez não sobreviva durante muito mais tempo sob a forma que nos é hoje familiar. Mas, podemos estar certo, continuará a acompanhar-nos.

Comments

  1. Luis Moreira says:

    E a tua paixão pelos livros…

  2. isac says:

    não esteja muito preocupado, carlos, que o livro não desaparece. a evolução tecnológica anula-se a ela própria constantemente, por isso a base “analógica” continuará sempre a ser o fiel da balança. é mais política de mercado que outra coisa.

  3. De facto, Luís, sou um apaixonado pelos livros. Mas, Isac, não estou nada preocupado com o fim do livro impresso. Nada é eterno e o livro, como hoje o conhecemos, também não. Contudo, foi isso que procurei transmitir, de uma forma ou de outra o livro irá sobreviver.

  4. maria monteiro says:

    os cheiros caracteristicos dos livros é que já vão desaparecendo…

  5. carla romualdo says:

    A resistência à mudança de suporte é recorrente, como diz o Carlos. Por questões de hábito, sensibilidade, apego àquilo que conhecemos desde sempre, pela carga afectiva que depositamos nos objectos. Acredito que o acordo com a Google é inevitável e poderá trazer muitas vantagens aos leitores. Implicará uma adaptação por parte da “indústria” dos livros, tal como já está a acontecer com as editoras discográficas, mas é apenas uma questão de tempo.

  6. Irá sobreviver sim senhor. O mais importante é continuar a haver quem os leia e os escreva, e há cada vez mais, a cultura digital propiciou igualmente um boom de criação – nem interessa agora se o que se escreve é mau se é bom, esse é outro assunto bem diferente e relativo. E é isso o mais importante porque haver quem os publique também é cada vez mais um tema irrelevante, com esta tendência crescente do print on demand ou do self publishing. As boas editoras continuarão a editar e a procurar adaptar-se a este novo mercado, mas abriram-se as comportas. Bela prosa, caro Carlos!

  7. isac says:

    já se sabe que nada é eterno. mas não tenho duvidas que os livros irão sobreviver mais tempo que as adaptações digitais. para o ano surge algo diferente e mais inovador e lá se vai o kindle com todo o conteúdo para galheiro. o problema são os próprios suportes. basta ver o VHS, o beta, o vinyl, etc… não desaparecem mas ficam ligados às máquinas e só para coleccionadores e revivalistas(!). e o velho livro apenas ganha pó… e uma outra traça.

  8. Carla Romualdo says:

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