João Loureiro e a justiça à medida do estatuto social

joão loureiroHá cerca de  dois meses, um pequeno restaurante da minha rua foi encerrado. Motivo: falta de entrega do IVA e, ao que parece, de outros impostos. Uma brigada das finanças, incorporando dois gigantões fardados, impôs o encerramento imediato do estabelecimento. Sucedeu a meio da manhã, quando a proprietária e o marido preparavam o menu do almoço. Sem tribunal nem juiz,  a loja foi compulsivamente fechada. Não pactuo com incumprimentos de obrigações fiscais; mas, o método usado pelas autoridades foi exagerado. Ou mesmo de revoltante injustiça, se comparado com os modos como os arguidos socialmente notáveis são tratados em processos bem mais graves e complexos.

A imprensa, Diário de Notícias e Publico por exemplo, anuncia a condenação de João Loureiro a dois anos de prisão, mas… – suspenda-se a respiração – com pena suspensa por cinco anos. O Tribunal de São João Novo,  do Porto, julgou e  condenou suavemente o antigo presidente do Boavista e outro arguido, ligado à SAD daquele clube, por “crime de abuso confiança fiscal”; crime que, segundo o art.º 105.º do RGIT – Regime Geral das Infracções Tributárias, é punível com, pelo menos, três anos de prisão (n.º 1 do citado artigo).

De referir que, no âmbito do processo, a parcela mais elevada correspondia a 2,5 milhões de euros de IRS, retido pela SAD boavisteira, durante 2003 e 2004. O imposto deriva de retenções sobre salários de futebolistas e funcionários. O tribunal, dizem as notícias, condenou também João Loureiro ao pagamento das prestações fiscais em dívida ao Estado.

Em qualquer país normal –  EUA por exemplo, para satisfação dos incansáveis defensores das teorias neoliberais – João Loureiro e o outro arguido, Vítor Borges, dificilmente escapariam à prisão efectiva, assim como à obrigação de entregar ao Estado o dinheiro devido. Todavia, em Portugal, as sentenças judiciais converteram-se numa espécie de “prête-à-porter” de matizes qualitativas e quantitativas flutuantes. A gravidade das penas varia em função do estatuto social do arguido. Se o arguido veste do Rosa & Teixeira ou de loja congénere, beneficia de castigo mais suave; se usa roupa e adereços comprados na ‘Ciganotton’, o castigo é mais severo – vide o caso  do restaurante encerrado ou de penhoras executadas pela máquina fiscal, sem que os visados sejam previamente ouvidos.

Seria desnecessário insistir, mas, de facto, este País atingiu os limites da falta de decência, até na justiça. Se calhar, para a terapia de casos do género de João Loureiro, o melhor será privatizar também o “sistema de (in)justiça”. Privatize-se, então. Até possibilitará à gente ilustre  assegurar total privacidade dos crimes cometidos. Ou seja, garante-se o recato criminal a que os famosos têm direito.

(Nota: É  minha obrigação declarar que, na abordagem deste caso, não considero responsável o Boavista Futebol Clube, instituição que respeito e que, tudo indica, sofreu prejuízos desportivos e patrimoniais de monta com a gestão de João Loureiro. Fiquemos por aqui)

Comments

  1. António de Almeida says:

    Não conheço a sentença, apenas o que li, mas pode ter existido atenuante por não ter existido apropriação do IVA em proveito próprio, mas precisamente do Boavista F.C., tivesse utilizado a verba para fins pessoais e muito previsivelmente o resultado seria outro…

    • carlos fonseca says:

      António, do que se lê em notícias, é explicitamente mencionado que, do processo, constava a não entrega ao Estado de 2,5 milhões de euros de IRS, retidos na fonte, respeitantes a salários de futebolistas e funcionários. É um acto de “abuso de confiança”, justamente equivalente à falta de entrega do IVA cobrado e não pago às Finanças. É crime punível segundo o artigo 105.º do RGIT, citado no meu ‘post’. A natureza da receita, IVA ou IRS, não determina tratamento distinto do cumprimento da legislação tributária. Se não entregues ao Estado as verbas de ambos, IVA e IRS, configuram o crime de abuso de confiança.
      Por outro lado – e digo-o com a experiência de quem foi Administrador não accionista de empresas – o incumprimento das leis fiscais traduz-se em responsabilidade pessoal, cometida aos gestores que compõem os orgãos sociais da empresa ou da instituição faltosa. O modo como o dinheiro foi gasto é aspecto secundário. O que conta, pois, é o incumprimento que, segundo a lei, é da responsabilidade dos gestores. De contrário, embora com pena suspensa, nem João Loureiro nem Vítor Borges teriam sido condenados.

  2. Artur says:

    Apesar de não ser dificil concordar com a má imagem da Justiça em Portugal, o texto parece estar enviesado de doutrina esquerdófila pouco séria e já recorrente.

    1- desculpabilização do pobre e infeliz comerciante que não pagou os impostos para o terrível Estado-papão;
    2- o Estado retratado pela figura de dois gigantões fardados;
    3 – imposição imediata do encerramento do restaurante, sem tribunal nem juiz;
    4 – não concordância com os métodos usados;
    5 – comparação com a justiça de outros paises;
    6 -penhoras executadas pela máquina fiscal sem notificação prévia;

    Este palavreado parece-me meramente baseado numa visão desfocada e eventualmente propositadamente incompleta da realidade.
    Vejamos porquê:
    1- as falhas e as punições dos “pequenos” não devem ser desculpadas pelas falhas e não-punições dos “graúdos”; cada caso é um caso, e a desculpa que a maioria dos cidadãos quando são apanhados a infringir utiliza: os outros também fazem e até fazem coisas piores e não são castigados; é absurda e infantil. De facto, pequenos crimes podem ser mais danosos para as vitimas do que os grandes crimes.
    2- se calhar queria que fosse proibido ao Estado usar pessoas corpolentas para não milindrar os feelings do cidadão-vitima. Então teriamos que impor aos candidatos às Policias, Finanças e Tribunais a regra de serem todos pequenos e de olhar meigo.
    3-Então acha que para qualquer acto administrativo ou judicial deveria estar presente um Juiz? Sabe quantos actos deste género ocorrem diariamente?
    4- Se calhar se o encerramento do restaurante fosse para penhora de uma divida que o dono do mesmo tivesse perante V.ª Ex.ª, aí talvez já concordasse com o método.Mas porque a divida é ao Estado…que método é que propunha?
    5- Duvido muito que exista um local no planeta onde a posição social-economica-politica não seja tida em consideração nos Tribunais. Não sejamos ingénuos em relação às fraquezas humanas.
    6- Puramente especulativo. Raros serão os casos em que não houve uma notificação prévia. De facto geralmente não há só uma, mas várias. O que acontece é que muitas pessoas procuram não ser “notificados”.

    Claro está que quem têm maior capacidade economica se safa melhor nos meandros da Justiça. Contudo os “pobrezinhos” se tivessem essa mesma capacidade também a usariam para se livrarem do castigo, independentemente de terem culpa. O problema reside na falta de moral generalizada e não na dicotomia pequenos vs poderosos.

    • carlos fonseca says:

      Artur, desculpar-me-á mas não desperdiçarei muito tempo com o seu comentário. Sem me conhecer, e apenas porque defendo princípios de ética e de igualdade com que o Estado deve tratar os cidadãos, passo a ser “esquedófilo”. Também lhe poderia chamar mentecapto, mas não o faço justamente por que nem o conheço e nem sequer disponho de dados pessoais que me permitam fazer juízos a seu respeito.
      Fui director e administrador de grandes empresas privadas, sublinho privadas, e os negócios do futebol e das SAD’s não são propriamente exemplos aos quais, como cidadão, me vergarei.
      DOU POR ENCERRADA A DISCUSSÃO.

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