A História não é do Povo, nem de Moscovo.

Não existe História asséptica, nem imparcial. Existe coerência, interpretação e bom senso. Infelizmente ainda não possuímos um código deontológico para Historiadores, pelo simples facto de que não existe, também, qualquer instituição que superintenda a escrita da História ou (superintender é capaz de ser inadequado) zele pela boa historiografia em Portugal. O panorama é comum a muitos países, embora em Portugal seja mais confrangedor, dado que a facilidade com que qualquer um toma para si a denominação de historiador, desacredita a boa história, a História com H grande, escrita segundo o método científico que esta disciplina exige. Por outro lado, como a História é pedagogia e a escola tornou-se um laboratório de conceitos fúteis, aplicados a pressupostos de progresso social e meta-social (o que quer que isso seja), o lugar das humanidades foi sendo substituído por «ciências» realmente «verdadeiras», por «números», por «conceitos» galicistas e anglo-saxónicos inventados por alguém, num gabinete esterilizado mas pouco ventilado, lá longe, em Bruxelas. A História tornou-se um adereço difícil de justificar. De tal forma que o Passado se torna, dia após dia, uma montra de clichés que perduram enquanto existirem a wikipédia e os humoristas.

Mas há algo de muito perigoso na História: o facto de, uma vez caída na rua, ela ser reduzida a um simples pedaço de plasticina que qualquer um molda, com a voracidade de uma criança. Foi o que aconteceu recentemente em Espanha com o novo Dicionário Biográfico editado pela Real Academia de História. Na esteira da desumanização e da socialização das ciências, a História passou a ser um entertenimento e, como tal, quando não entretém, está mal. Está errada. Bem sei que sempre foi apologia dos «ismos» a manipulação da historiografia e que neste período do demagogismo, são os movimentos colectivos que tomam a seu cargo, pela pressão mediática, a condução da censura que outrora cabia a certos condottieri. Mas começa a tornar-se um hábito, conduzir a formatação ideológica da História e da historiografia ao extremo. Começa, aliás, a tornar-se um hábito, o vulgar cidadão considerar-se um super-homem, dotado com o conhecimento de astro-físico e de político, passando pelo domínio absoluto da História ou da medicina, entre outras muitas áreas. Mas se a minha avó costumava dizer que «de médico e de louco todos temos uma pouco», também replicava, de vez em quando, que «cada macaco no seu galho». E estava certíssima.

Por isso, não discutirei se a entrada ou o verbete biográfico de Franco está ou não incorrecta e (ou) contém apreciações parciais sobre a sua via pessoal e política. Ainda não o li e de Franco sei apenas o que aprendi em História Contemporânea da Europa, complementado com um trabalho que então apresentei à mesma cadeira sobre a Guerra Civil de Espanha. Mas creio ser muito pouco para abalizar sobre os erros do historiador que redigiu o artigo. Uma coisa é certa. Se difícilmente um médico discutirá com o doente o diagnóstico e a terapêutica, também o historiador não deve deixar-se intimidar por bandeiras vermelhas ou republicanas. Pelo menos se vieram na mão de não historiadores. E mesmo assim…

A história não é como a comunicação social que na sua incapacidade de produzir pensamento, se vende por um prato de comida ideológica. A História tem um objectivo muito simples: conhecer e intrepretar o Passado para contribuir na construção colectiva de um Presente e um Futuro melhores. Não existe para agradar às multidões.

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Comments

  1. Essa de “um regime que era autoritário, mas não totalitário” é peditório também nacional. Não tem nenhum fundamento científico, é puro branqueamento, mas bem pode ter o aval das Academias que da História registam o descanso da senilidade.
    Também sou alérgico ao exercício da História por contadores de estórias não habilitados, mas tens de convir que as academias não passam de um clube de reformados.
    Nem falo pela APH, que mal conheço embora ande a ler uma biografia de Afonso Henriques, da autoria da sua presidente, que é uma tolice pegada, mas com a ANBA tive em tempos uma experiência fulminante: numa certa idade, as pessoas só ganhavam, até pelo que em tempos deram à ciência, se ficassem sossegadas.

    • Verdade. Quanto ao artigo do Franco, deixarei para quando o ler.
      Aposto que nenhum dos deputados do PSOE que exige a destruição do dicionário, o fez ainda.
      Coisas do século XXI. Se não vem nos jornais ou nos blogues, não existe.

  2. Aliás, a “obra”, pelos vistos, foi feita à imagem de quem a pagou:
    “Somos deudores del presidente Aznar” Los primeros 25 tomos del diccionario, que sólo llegan hasta la letra ‘h’, ya están a la venta a través de la página web de la Real Academia de la Historia (www.rah.es). El presidente de la institución, Gonzalo Anes, resaltó este jueves que fueron sus buenas relaciones con José María Aznar las que impulsaron el proyecto, llegando a señalar que “somos deudores del presidente Aznar”. “En 1998 le invité a visitar la Academia y le expuse la necesidad de hacer el diccionario. Siendo ministra de Cultura Esperanza Aguirre, en 1999, el Ministerio aprobó cien millones de pesetas anuales [600.000 euros] durante ocho años para hacerlo”, afirmó Anes.
    http://www.publico.es/culturas/378862/autoritario-no-totalitario

  3. “Não existe para agradar às multidões.”

    Não me apercebi, nos tempos de escola, que a nossa História – nomeadamente a expansionista – fosse reprovável sob nenhum ponto de vista;
    a nossa “natural” expansão, a começar pelo génese do Portugal continental, e entrando na expansão africana e marítima foi-me ensinada como uma inevitabilidade geográfica e religiosa.
    Fomos dilatar a fé e o império, e colocava-se grande destaque na fé… em nome da fé… trespassar, invadir, empalar.

    Da História que aprendi na escola, e como me foi apresentada, concluo sempre que ela existe e tem utilidade enquanto agrada às multidões, enquanto lhes eleva o espírito.

    • É verdade, Dario. Mas não devia ser assim. O mofo da glória expansionista está ao mesmo nível dos revisionismos à Esquerda ou à Direita.

      • Pode acontecer que a expulsão dos Filipes de Portugal seja, em Espanha, vista como uma benção: sairam a tempo.

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