Os caminhos do Senhor

O caso ocorreu recen-temente em Valpaços e foi notícia de destaque na imprensa nacional. Um padre católico recusou a comunhão a uma paroquiana, adolescente de 16 anos, argumentando com a “indecência” do decote que, ao que parece, nem era tão ousado quanto vislumbraram os olhos gulosos do abade. Ora, a teologia ensina-nos “que nunca o sacerdote deve arredar um só momento o seu espírito da contemplação de Deus e da meditação da Graça”. Não foi o que aconteceu neste caso. O olhar concupiscente do reverendo ter-se-á, ainda que por momentos, desviado do “corpo de Cristo” para se extasiar, libidinosamente, perante os seios disparados da adolescente. Pecando por pensamentos, o abade cedeu à sedução satanífera e vai daí decidiu logo ali recusar à jovem a recepção da Graça!A Igreja Católica lida mal com o corpo. Sempre foi assim. Basta recordar os inimigos da alma da minha infância catequética – o mundo, o demónio e a carne. Esta referência à “carne” enquanto metáfora do corpo, parece-me hoje obscena senão mesmo repugnante. Tanto mais que exemplos bem recentes oriundos de todo o mundo vieram relevar a disfunção entre a teoria e a prática, num deboche de pedofilia sacerdotal que varreu uma boa parte do universo católico. Se bem que, um estudo recente da Universidade da Cidade de Nova Iorque, feito a pedido da Conferência Episcopal dos Estados Unidos, tivesse vindo comprovar de forma insofismável que os mais de sete mil casos confirmados de violações e abusos sexuais sobre crianças praticados por padres católicos, se ficaram a dever às “mudanças sociais” e particularmente à “revolução sexual dos anos 60 e 70”. Em suma, a culpa foi da… sociedade! Não foi da Igreja, tão pouco dos padres abusadores, menos ainda do demónio. Não. Podem os bispos americanos e outros, da Holanda, da Bélgica, da Austrália, da Alemanha e de muitos outros países, dormir descansados, mesmo conhecendo os abusadores que esconderam da justiça, transferindo-os para novas paróquias e novos colégios onde, fatigados do breviário, “puderam continuar a dedicar-se à nobre tarefa de mostrar às crianças o bom caminho”! O estudo referido veio, felizmente e graças a Deus, continuar a garantir-lhes o lugarzinho que já têm reservado no céu. Para o inferno irá, irreversivelmente, a… sociedade!

Curiosamente, a leitura do caso da adolescente de Valpaços coincidiu com uma outra de uma crónica de António Lobo Antunes publicada na Visão, a quem roubei o título deste texto, e que me transportou para o ritual “folclórico” da preparação para a primeira comunhão nos meus tempos de catecismo e de cruzado. Recomendava-se então uma série de coisas úteis ou mesmo tidas por indispensáveis: assim, não comer nem beber depois da meia-noite até à hora de comungar, para que Jesus não tropeçasse eventualmente nalgum pedaço de sardinha mal digerido; depois, era preciso “vestir a melhor roupa mas com mangas compridas dado que Deus odeia a carne ao léu; receber a hóstia sem lhe tocar com os dentes e não a descolar do céu da boca com o mindinho, consentindo apenas que a saliva (o termo cuspo não é da estima divina) ajude Jesus a deslizar sem riscos até ao estômago devidamente limpo, templo interior adequado à recepção da Graça.” Depois, para onde a Graça ia, isso já não sei. De certo se elevaria “do estômago até à alma, através dos misteriosos tubos que possuímos cá dentro, destinados ao trajecto barriga-céu sem paragens intermediárias.” Ainda hoje não consigo localizar a minha alma, presumindo que deva vaguear algures pelas regiões etéreas das bem-aventuranças em que, enquanto ateu, tenho felizmente vivido.

Eram tempos de um silêncio respeitoso que pairava sobre esta pátria devota, de culto católico e mariano, avessa ao decote, ao casamento civil e ao comunismo ateu, coisas tidas por desumanas e muito perigosas que o catecismo dissolvido em água-benta ajudava a esconjurar. Perante o olhar “paternal, afectuoso e digno” de Salazar, que me lembro de ver emoldurado num retrato a apertar a mão ao cardeal Cerejeira numa cumplicidade cristã de dois homens santos iluminados pela fé. Assim eram os caminhos do Senhor. Assim continuam a sê-lo. Ínvios, como sempre.

P.S. – Alguns candidatos a meritíssimos juízes foram apanhados a copiar num teste. Resultado – tiveram todos, os trafulhas e os outros, a nota dez! Ora, não só estamos a formar magistrados aldrabões porque copiam, como absolutamente canhestros por não saberem copiar. Definitivamente.

José Luís Cunha in Jornal de Barcelos de 21 de Junho de 2011

Comments

  1. Um bom desenvolvimento, infelizmente com um argumento inicial tendencioso.

    Meu caro José:
    Se eu quiser ir jantar ao Casino tenho que vestir casaco e gravata. A igreja é um espaço cerimonial: não acha que deva existir um código de vestir?
    É um exemplo no masculino, não vale – ouço-o dizer. Cá vão exemplos mais fortes e relacionados com o vestir feminino.
    Em algumas zonas balneares (portuguesas e estrangeiras) as senhoras não podem entrar em fato de banho e chinelas (mesmo com o fato de banho obviamente seco). Isto para não mencionar de minha experiência já ter visto a entrada negada em algumas discotecas nas Baleares(!) a mulheres vestidas com túnicas transparentes (ou translúcidas) embora fosse bem visível (como poderia não o ser?) que usavam roupinha interior opaca.

    Já agora, meu caro José, diga-me o que pensa do uso obrigatório da burca pelas muçulmanas, mesmo quando residentes em países não muçulmanos?

  2. no meu entender, é urgente que a santa madre igreja portuguesa estabeleça regras de conduta de vestimenta para os fiéis (aqueles que vão participar no culto) e outros (aqueles que visitam as igrejas: turistas e afins) para o acesso aos templos e que estas sejam afixadas à entrada dos templos, regras se possível ilustrativas, procurando assim evitar equívocos, quer a quem pretende visitar os templos, quer a quem quer participar nalguma cerimónia religiosa, quer ainda aos admimistradores do culto.
    mais:deveria existir à entrada segurança especializada , tipo discoteecas, para rastrear e restringir a admissão de fiéis e outros, ao interior sagrado dos templos, caso não cumprissem as regras..
    assim, eventos como aquele focado neste post, não seriam notícia, e todos viveríamos mais felizes, e serenos na graça do Senhor, apesar do déficite e da dívida pública.

  3. Pedro Silva says:

    grande ordinário este senhor josé luis cunha

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