Sobre a Auditoria Cidadã à Dívida pública portuguesa

«No caso de Portugal, o principal problema não era a dívida pública. Ainda que desde 2000 se tenha vindo a observar o aumento do rácio da dívida pública no PIB, até 2005 este rácio esteve sempre abaixo de 60%, o mínimo requerido pelos critérios de Maastricht, estando o seu crescimento relativamente contido até 2008.» [citado do Projecto de Resolução da Convenção da Iniciativa por uma Auditoria Cidadã à Dívida Pública; destaque meu]

Dívida em percentagem do PIBEsta iniciativa propõe-se fazer um trabalho sério sobre a dívida pública portuguesa mas começa logo, no seu manifesto inicial, com imprecisões que me levam a questionar se o trabalho final será de igual (baixo) rigor. A citação supra, para ser exacta, deveria dizer que, de 2000 a 2008 o crescimento da dívida pública foi linear e que, se a crise internacional não nos tivesse batido à porta, seria uma questão de tempo (mais 7 anos) até atingirmos o mesmo valor que se registou em 2010 (caso a tendência se mantivesse, claro).

«Esta auditoria pode levar à conclusão de que há parcelas da dívida, ilegítimas, que devem ser repudiadas.»

«A estratégia da austeridade é socialmente brutal e economicamente fútil.»

«Esta estratégia desenhada a régua e esquadro pelo FMI é incapaz de produzir os resultados que promete.»

Todo o texto de apresentação deste projecto é uma moção, uma tese. Lança um conjunto de ideias pré-concebidas (das quais as três supra citadas são uma pequeníssima amostra) e parece-me que vai, tal como no caso da primeira citação, em busca de números que fundamentem  os argumentos apresentados no texto. É pena, pois estou mais interessado em perceber onde é que se está a gastar o dinheiro neste país do que num exercício de procurar de argumentos que validem uma tese. Mas vamos ver o que disto resulta; nada custa dar o benefício da dúvida.

Notas soltas

– Quanto ao título da iniciativa: Auditoria Cidadã à Dívida pública portuguesa. Cidadã? Mas em oposição a quê? Auditoria técnica? Auditoria política? Auditoria judicial? Faz-me lembrar a onda dos independentes e a necessidade de sublinhar a diferença, para depois se constatar que não são os títulos mas sim as atitudes que diferenciam.

– No esquerda.net podemos ler que «a Convenção de Lisboa contou com 600 participantes para discutir e formalizar o arranque da Auditoria Cidadã à Dívida Pública portuguesa» mas  a Lusa fala numa sala com capacidade para 300 pessoas. Alguém se enganou… :- )

– Ainda sobre a convenção, Eugénia Pires, um dos membros da comissão eleita, destacou que “havia pessoas sentadas no chão e nas escadas”. Preferiram, certamente, não ocupar os lugares vagos que se podem ver neste vídeo:- )

– Por curiosidade fui ver quem eram os 42 subscritores da iniciativa. O JN destaca alguns deles (e eu acrescentei mais alguns dados):

  • Manuel Carvalho da Silva, Secretário geral da CGTP
  • José Soeiro, deputado do BE
  • Octávio Teixeira, economista e membro do PCP
  • Ana Benavente, socióloga, ex-secretária de Estado da Educação nos governos de Guterres
  • Boaventura Sousa Santos, sociólogo, simpatizante do BE
  • Pedro Bacelar de Vasconcelos, constitucionalista , Ex-Governador Civil de Braga nomeado pelo governo de Guterres
  • Alexandre Sousa Carvalho, membro fundadores do Movimento 12 de Março, fez parte da Juventude Comunista Portuguesa
  • João Labrincha, membro fundadores do Movimento 12 de Março, fez parte da Juventude Socialista
  • Raquel Freire, cineasta, membro fundadores do Movimento 12 de Março, simpatizante do BE
  • Luísa Costa Gomes, escritora
  • Adelino Gomes, jornalista, ex-director adjunto da RDP e ex-Provedor do Ouvinte
  • José Vítor Malheiros, jornalista
  •  José Gusmão, ex-deputado do BE 
  • Isabel de Castro, ex-deputada do PEV

Fiquei a perceber a razão da colagem de argumentos desta iniciativa aos dos PCP e BE.

A lista completa:
COMISSÃO DE AUDITORIA CIDADÃ – 17.12.2011
Adelino Gomes
Albertina Pena
Alexandre Sousa Carvalho
Ana Benavente
António Avelãs
António Carlos Santos
António Romão
Bernardino Aranda
Boaventura Sousa Santos
Eugénia Pires
Guilherme da Fonseca Statter
Henrique Sousa
Isabel Castro
Joana Lopes
João Camargo
João Labrincha
João Pedro Martins
João Rodrigues
José Castro Caldas
José Goulão
José Guilherme Gusmão
José Reis
José Soeiro
José Vitor Malheiros
Lídia Fernandes
Luís Bernardo
Luísa Costa Gomes
Manuel Brandão Alves
Manuel Carvalho da Silva
Manuel Correia Fernandes
Maria da Paz Campos Lima
Mariana Avelãs
Mariana Mortágua
Martins Guerreiro
Octávio Teixeira
Olinda Lousã
Pedro Bacelar de Vasconcelos
Raquel Freire
Ramiro Rodrigues
Sandro Mendonça
Sandra Monteiro
Sara Rocha
Ulisses Garrido
Vítor Dias

Comments

  1. Tiro ao Alvo says:

    Eu conheci um vizinho que gostava de atirar setas ao alvo e de acertar sempre na mouche. Quando não conseguia isso ficava irado e não se podia aturar. Todavia, alguém lhe ensinou um sistema para acertar sempre, e nunca mais o vi zangado. Ele fazia assim: atirava a seta e, depois, com calma, desenhava o alvo.
    Também tenho a impressão que estes promotores são todos “desenhadores”.
    .

    • Quanta da dívida pública deriva de favores políticos feitos a privados como é o caso das Parcerias Público Privadas? É que não há um só português que creia que os negociadores por parte do Estado na elaboração dos contratos, fosse ingénuo, ou destituído de um mínimo de inteligência.
      Não me admiro que as pessoas afectas ao PS, PSD e CDS não estejam interessados em participar, por razões óbvias.
      Cumps

    • jorge fliscorno says:

      Muito bom!

    • Ana Bárbara Ribeiro says:

      Parece, não posso ter a certeza, que se tratará de uso de obras de terceiros sem consentimento prévio. É a Lei, que talvez tenha que ser revista. Afinal pode tratar-se de serviço público. Quando um blog, página ou video contenha materiais com autores certos e determinados, pode estar a contribuir para a sua divulgação e para o conhecimento. Estes são, a meu ver os propósitos mais nobre das redes sociais e da grande rede social que é a Internet. Pode, deste modo comprometer a sobrevivência dos autores, ou pretende-se sim defender os interesses económicos (puros) dos editores e distribuidores que, por este meio se encontram ameaçados?

  2. J.Pinto says:

    Jorge, concordo totalmente com a sua visão. A dívida pública portuguesa é estrutural. A crise externa veio apenas antecipar um cenário que, a continuar com a mesma evolução, iria acontecer mais tarde.

    Como sabe, caro Jorge, ainda há muita gente que não acredita que o nosso verdadeiro problema financeiro não está no excesso de dívida, provocado pelo excesso de despesa.

    • caro J Pinto.. não me queria emiscuir em temas que não domino
      mas gostava só colocar esta questão para debate:
      cito:

      Como sabe, caro Jorge, ainda há muita gente que não acredita que o nosso verdadeiro problema financeiro não está no excesso de dívida, provocado pelo excesso de despesa…….

      se a divida publica é estrutural .. porque é foi precisa a crise externa? para nos alertar tinhamos um problema financeiro e excesso de dívida?

      questão:

      Não deviamos primeiro, tentar resolver sózinhos o problema estrutural .. e só depois criarmos um problema financeiro com excesso de dívida??

      ou então criarmos um problema financeiro com excesso de dívida para resolver um problema estrutural …

      o …que não resolvemos..

      conclusão:

      criámos um problema financeiro com excesso de dívida e não resolvemos um problema estrutural …

      e .. AGORA??!!

      questão simples de um leigo

      cump

      mario carvalho

      • J.Pinto says:

        Bom dia Mário,

        O nosso problema estrutural não é de dívida, é de despesa em relação à produção. A nossa despesa, quando comparada com o que produzimos, é elevada, pelo que não temos receitas suficientes para pagar a despesa. Se reparar nos dados da despesa, a nossa despesa corrente (a estrutural) tem crescido desmesuradamente, enquanto a despesa não estrutural (investimento) até tem caído. Não esquecer que me estou a referir às nossas contas da Administração Pública, aquelas que contam para o défice.

        No entanto, como sabemos, há despesas que contam para a dívida e não para o défice. Por isso a dívida tem crescido mais do que as necessidades de financiamento (défice).

        A crise apenas veio antecipar um cenário que se iria verificar três ou quatro anos mais tarde.

        “se a divida publica é estrutural .. porque é foi precisa a crise externa? para nos alertar tinhamos um problema financeiro e excesso de dívida?”

        Caro Mário,

        A nossa crise, como a Grega, não foi tem origem na crise externa – esta apenas a antecipou. Tem origem claramente interna, o que não quer dizer que entidades externas (UE) não pudessem ter feito mais alguma coisa para atenuar as consequências desta crise.

        Culparmos os outros por aquilo que fizemos de mal é ignorarmos as verdadeiras causas da crise.

        Acha que um país que nos últimos 35 anos foi intervencionado 3 vezes tem razões para culpar os outros da atual crise?

  3. kirk says:

    Meus caros, é evidente que aqui não está ninguém que venha cá para ser esclarecido. Todos os comentadores têm mais ou menos a sua posição definida e sabem que não vão convencer nenhum dos outros de que têm/não têm razão.
    Assim sendo eu vou pelo que o postador diz: vamos dar o beneficio da dúvida; o mais que pode acontecer é a IAC estar enganada; mas se não estiver e dar-se o caso de haver mesmo dívida ilegitima quem discordar de que se faça a auditoria pode sempre pegar em 30.000 euros (acho que é este o valor que cada português deve de momento) e entregá-los ao Estado que pela certa não recusará.
    Ocorre-me de repente que o governo teria muito a ganhar se se viesse a descobrir que parte da dívida é ilegitima ou ilegal. Já viram como as contas de repente melhoravam imenso? Quantas almofadas não se poderiam comprar!…
    K

  4. Bernardo Bombaim says:

    Só gostava de perceber uma coisa: Quando alguém nos diz que temos uma dívida não devemos de saber detalhadamente a que é que corresponde essa dívida ? Não será que durante os últimos 30/40 anos houve quem abusasse da sua influência no estado para o lesar e fazer contratos milionários que só servissem os seus interesses ? Quando temos que pagar algo não queremos saber o que estamos a pagar e a quem estamos a pagar ?

    Qual é o problema de no papel de cidadão querer fazer estas perguntas e ter respostas concretas ? As pessoas que fazem greve à greve, que se conformam com as inevitabilidades desta vida, que acreditam que só existe uma solução e mais nada pode ser equacionado nem perguntas devem ser feitas, não vos parece estranho que este seja o caminho que temos que tomar ? Não vos parece estranho que a opinião pública seja uma única e soberana voz que nos impõe uma austeridade como a única solução possível ?

    Nada é impossível de mudar!

    “Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.
    E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
    Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar.”

  5. Referir só algumas confusões e eventuais «erros de perspectiva»: (1) houve duas sessões no São Jorge, em dois dias seguidos e em duas salas distintas: uma tinha capacidade para umas duzentas pessoas e, de facto, havia pessoal sentado nas escadas. Outra – a maior – tem capacidade, declarada pela CML, para 848 pessoas. E aí, estando lá umas 600 pessoas, havia de facto bastantes lugares vagos.
    Um «erro de perspectiva» que importa assinalar é a eventual confusão entre o défice comercial do país e a dívida pública (garantida pelo Estado) que resulta quer dos défices orçamentais acumulados, quer dos empréstimos contraídos pelo Estado e ainda pelas garantias e resgates da banca falida. Ao falar-se do crescimento «desmesurado» da despesa, era bom – quase ninguém fala nisso – da desmesurada «fuga de capitais» que, ao sairem do país deixam os bancos fragilizados, obrigando-os a ir contrair empréstimos (que eventualmente têm que ter o aval do Estado)… Para mal dos meus pecados já vivi este filme – da dívida pública – há uns 30 anos atrás…

  6. A.CONTREIRAS says:

    Só tenho a dizer o seguinte (e desculpem gritar, não faz normalmente o meu estilo, mas parece que há por aqui muita gente surda):
    PARECE É QUE VOCÊS ESTÃO COM PROBLEMAS DE SE FAZER UMA AUDITORIA À DÍVIDA!
    EU SUBSCREVI E NAO TENHO PARTIDO. SEI DO QUE A CASA – OU SEJA, OS PARTIDOS – GASTA. MAS AQUI ATÉ HÁ INDEPENDENTES E ESTOU-ME NAS TINTAS.
    EM PORTUGAL TEMOS UM TENEBROSO DÉFICE DE CIDADANIA. OU FALANDO SIMPLES – NINGUÉM PROTESTA, NINGUÉM DUVIDA, TODOS (OU QUASE TODOS) COMEM E NAO BUFAM.
    E vocês, em vez de aplaudirem quem questiona (bem ou mal) ainda vêm criticar?
    SE NÃO GOSTAM DO ESTILO, É SIMPLES, FAÇAM OUTRA! Olhem, eu assino de cruz também a vossa.
    NO FIM, CÁ ESTAMOS PARA ANALISAR À LUPA OS RESULTADOS.
    Mas, não, suas inteligências raras – embora conservadas em formol e cheirando a bafio, pela imagem junta – o que receiam é que alguém faça alguma coisa e se questione.
    Daaahhh…. Vão dar banho ao cão e não chateiem…. Enfim, viver 30 anos em subsidiodependência, é o que dá, bafio, inutilidade e impotência incorporadas um pouco por todo o lado.

    • Ana Bárbara Ribeiro says:

      Gosto de “pelo na venta”, e que se chamem as coisas pelos nomes. O problema é que a verdade é difícil, dá trabalho e fazê-la exige o tal trabalho de cidadania, mas é preciso entender que ainda assim, para a sua eficácia, há que existir um movimento, eu até diria, vários, múltiplos, que configurariam as especializações, próprias das variadas temáticas.
      É no colectivo que se encontra a socialização, e é nela que se atingem os denominadores comuns próprios da democracia. Se os cidadãos se demitirem do seu papel de cidadania, inexistem os controlos garantísticos dos interesses e direitos legítimos do povo. À procura da alternativa é o que nos une, semeemos, cada um, uma horta que dê frutos para a democracia, numa concretização dos princípios e valores que defendem a nossa qualidade de vida!

  7. jorge fliscorno says:

    Contreiras, percebeu o post?

  8. Auditoria cidadã por oposição a auditoria oficial. Que era do mais elementar dever do governo fazer, mas não faz.

  9. Carlos Lourenço says:

    Segundo os dados do Banco Mundial disponíveis online, assim como em outras variadíssimas fontes igualmente disponíveis online, a dívida pública portuguesa em percentagem do PIB durante virtualmente todo o período entre 2001 e 2007, encontra-se abaixo dos 70%, o ponto de sustentabilidade identificado por Reinhart & Rogoff (2011) no seu mui famoso estudo.

    Mais, segundo os mesmo dados, a pública portuguesa em percentagem do PIB chega mesmo a conhecer uma inflexão (i.e. uma redução) nos anos 2006 e 2007.

    Ora, em 2008, o PIB praticamente não cresce, e a dívida dispara quase 10 pontos percentuais, de 67.5% para 78.8%, cruzando assim, pela primeira vez em várias décadas, a barreira dos 70%.

    Finalmente, a linearidade da evolução da dívida pública em percentagem do PIB neste gráfico é perfeitamente contemporânea à introdução da moeda única, numa arquitectura e num sistema bancário e financeiro em geral que facilitaram (induziram?) o acesso ao crédito a pequenas economias abertas com fraca capacidade produtiva.

    A única coisa estrutural em tudo isto é a “racionalidade” em pedir emprestado a juros baixos — porque isso faz todo o sentido no quadro de um sistema financeiro–, e o risco em fazê-lo não estando a crescer. É só quando as duas coisas cessam — os juros sobem e a economia não cresce, que é o que acontece numa crise financeira de proporções como a de finais de 2007 — que surge o problema. Para quem pediu emprestado e para quem emprestou.

    Mais, vários países tinham trajectórias da dívida e do défice bem diferentes — não estruturais? — de Portugal. Alguns estão agora em crise ou à beira dela, mesmo quase 6 anos após o início da crise financeira.

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