O síndroma Egas Moniz

Sempre me inquietou aquela ilustração dos antigos livros de História em que o fidalgo, com a mulher e os filhos, descalços e de baraço ao pescoço, se davam à morte na frente do Rei de Leão e Castela.
Se o Afonso Henriques rasgou o memorando, desculpem, marimbou no acordo feito porque tinha mais que ser, se estavam sitiados e quase mortos de fome tinham de prometer qualquer coisinha e nessas alturas promete-se tudo e mais alguma coisa e quem nunca o fez pode-se dar por feliz, e entrou por Galiza adentro, ele lá sabia o que estava a fazer, e se até um antigo presidente da assembleia geral da ONU já disse que os acordos entre Estados, ou condados ou lá o que nós éramos, ou ainda somos, não têm de ser cumpridos porque, infelizmente, a maior parte deles nunca passa de letra de forma, não pode ser desonra para um homem de estado dar o dito por não dito mas se o Egas se sentiu incomodado então que fosse sozinho e deixasse a mulher e as crianças em paz.
Essa é a parte que me chateia, o gajo levou a mulher e os filhos para pagarem por um suposto erro dele e de certeza, ou quase, que não lhes pediu a opinião: Vamos lá que se eu estou lixado vocês vão estar comigo que o meu senhor vai ter de perceber que sou um homem de palavra e sacrifico os meus por ela sem levantar armas ou tentar defendê-los.
Muito bem, ó Egas. mas talvez tenha sido por isso que na História ficaste conhecido por “Aio”, ao contrário do outro sacana que rasgou acordos e bateu na mãe mas que, pelo menos, chegou a Rei e nos deixou uma pátria.

A história gosta de contar estórias e não sei se o Egas, que há muito que não está cá para se defender, foi mesmo ter com o Afonso dos outros, de túnica branca vestida, descalço, corda ao pescoço e com a família toda atrás, prontinho para se darem à morte, mas o que digo é que pode ficar bem ao Camões, que foi um poeta e ainda é e isso ainda nos vai valendo quando temos de sacar trunfos, dizer coisas como “Vês aqui trago as vidas inocentes, Dos filhos sem pecado, e da consorte, Se a peitos generosos e excelentes, Dos fracos satisfaz a fera morte”, mas um povo, poeta ou não, que faz do Egas Moniz um seu herói, merece o governo que tem. Só que não contem comigo, nem com as minhas filhas, para de baraço ao pescoço darmos a vida pelas dívidas dos senhores. É que de Egas Moniz e de poetas temos pouco e a mim sempre me inquietou, como já disse, aquela ilustração dos livros de História.

Comments

  1. xico says:

    Cara Teresa, (permita-me, porque o seu texto me é caro)
    É terrível o que disse. Se queremos ser aios ou reis. Tem toda a razão mas, como Afonso, teremos de aceitar as consequências dos actos. Quando aí chegarmos, vai ver que o povo quer ser aio e aí a Teresa irá descobrir o que custa a solidão.
    De qualquer modo, Afonso não deixou de ser homem de palavra, por isso tinha amigos nos muçulmanos. E por isso fazia birras aos godos. A nós, hoje, quem nos ampara as costas? Os angolanos? Os brasileiros? Era preciso que nos respeitassem como os mouros respeitavam o ibn Arrik El Bortukali. Basta ler os jornais angolanos para ver em que nível está o respeito.

  2. “Muito bem, ó Egas. mas talvez tenha sido por isso que na História ficaste conhecido por “Aio”, ao contrário do outro sacana que rasgou acordos e bateu na mãe mas que, pelo menos, chegou a Rei e nos deixou uma pátria”.

  3. Teresa, a sua capacidade ficcional é muito boa, e o seu sentido crítico é implacável e invulgar (até agora nunca tinha lido nenhuma censura a Egas Moniz, apenas elogios pela sua ombridade e respeito pela dívida moral).
    Além disso escreve bem, literariamente falando.
    Apenas em termos linguísticos cometeu um erro: síndroma,ou síndrome, é do género feminino, ou seja,”a síndrome”

    Cordialmente,
    G.Lino

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