Foto: Supercalli
Gosto daquela ideia do café para solitários, ali entre a Carson McCullers e o Tom Waits, balada do café triste encontra o coração de sábado à noite, qualquer coisa por essas redondezas. Cafés com um monólogo em cada mesa, e nos quais nasce – é esse o milagre dessas peculiares igrejas que são os cafés – num arrebato da polifonia, um diálogo, improvável diálogo entre muitas almas que vão falando consigo mesmas. De uma mesa para outra pode lançar-se uma ponte, alinhavar conspirações, começar namoros, descobrir parentescos desconhecidos, qualquer coisa. Para a conversa acabar, é só levantar-se, deixar a moeda sobre o tampo e ir embora, sem mais remorso.
Antigamente, qualquer um podia ir ao café pôr a cabeça em ordem, ver gente, meter conversa, comentar as notícias, confessar mágoas, embebedar-se ou curar a ressaca. Sentavas-te sozinho e acabavas a ouvir os poemas do Rui, a preencher o IRS da velhota que se tinha esquecido dos óculos em casa, ou a meter água na fervura de uma discussão conjugal, a ajudar a jovem mãe a dar o iogurte ao catraio, ou simplesmente a ouvir a história da pessoa do lado, sem preâmbulos nem porquês.
Ainda há disso? Há, em alguns cafés de bairro, mas até por aí a escuta atenta entrou em défice. Num café onde parei há uns anos – o Ceuta – apareceu uma modernidade chamada “Todo ouvidos”. Duas psicólogas consultam, sem que seja realmente uma consulta, quem quiser contar-lhe coisas. A audição sai a 27 cêntimos por minuto, não sei se o IVA está incluído, é capaz de não estar, mas também não me digam que estão a pensar pedir recibo.
Por 27 cêntimos por minuto todos nós – solitários, atormentados, indecisos, angustiados, insones, ansiosos, temerosos, sobreexcitados – podemos comprar um “escuto” (chama-se assim o “vale” para uma consulta) e ganhamos direito a psicóloga por quinze minutos. Esgotado esse tempo, ou está a catarse acabada – porque para catarse e aconselhamento não acredito que dê – ou é preciso investir mais. O “escuto” custa quatro euros e vale por quinze minutos. 0,27 euros por minuto, é verdade, já fiz a conta.
Privacidade não há, mas a quatro euros, que esperam? É a psicologia low cost. E amigos, ainda há? A responsável pelo “projecto” graceja e diz que o “escuto” é “uma boa prenda” para aqueles “amigos mais faladores que já não podemos ouvir”. Eu mandaria à merda na hora e com efeitos duradouros qualquer suposto amigo que me desse um “escuto” e me despachasse para a psicóloga do café, mas, quem sabe?, talvez fosse de agradecer. A mesma responsável conta que tem havido interesse, as pessoas “começam mesmo a falar dos problemas que têm, mas ainda não vêm com um ‘escuto’ como nós queremos”.
Mal habituadas, é o que é. Ainda não perceberam que os tempos não estão para ouvidos grátis.
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