Sacrificados

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Diz quem acredita que Cristo foi dado em sacrifício ao seu pai, com a anuência deste, para nos salvar a nós, ímpios, de todo o pecado.

Se assim foi, por que motivo continuam tantos e tantos seres a ser sacrificados diariamente?  Como se explica que haja famílias destroçadas tão frequentemente? Não bastou aquela morte?

Como é que um padre que já enterrou 92 pescadores consegue continuar a acreditar em Deus e consegue continuar a exercer a sua profissão? Respeito a fé deste homem e de todas as pessoas que acreditam, mas é algo que me ultrapassa.

Desde Outubro do ano passado voltei a estar em contacto com a população de Vila do Conde e Póvoa de Varzim. Muitos dos meus formandos são caxineiros. Sempre que algo acontece no mar, noto-lhes as preocupações no rosto, ouço-os mais calados, sinto-os apreensivos. Por vezes, nem sei que se deu mais uma tragédia, mas, mal entro na sala de formação, percebo logo pelo ambiente que algo aconteceu.

Gosto das pessoas daqueles lados. Gosto dos caxineiros, pessoas francas, com o coração ao pé da boca, disparatam por tudo e por nada, são arruaceiros, são emotivos, mas também são pessoas humildes e amigas de quem precisa. Talvez as enormes necessidades por que passam muitas das famílias que vivem da pesca façam desta população mais unida, solidária entre si. Talvez.

Tenho a sorte de lidar com grupos de pessoas muito diferentes.

Durante o dia, dou formação a jovens entre os 15 e os 23 anos de idade. Quase todos têm familiares no mar. Se não são os familiares, são os vizinhos, os pais dos amigos, os conhecidos. Este Inverno senti com eles as dificuldades de quem não pode trabalhar porque o mau tempo não permite que os barcos saiam para a faina dias a fio. Nos intervalos, muitas vezes me falavam disso. Dos conhecidos que já passavam necessidades, dos pescadores que, sem ter trabalho, andavam tristes, infelizes por não poderem sustentar as suas famílias. Aquele é um povo orgulhoso e ainda muito machista. Ainda muitos homens não gostam que as suas mulheres trabalhem fora de casa. Mas a falta de trabalho obriga a que as mulheres que o podem fazer saiam de casa para trabalhar.

À noite, dei formação de Inglês para a Actividade Marítima a um grupo excelente de pessoas excelentes, que estavam fazer a sua formação para trabalhar nos mares. Esse curso já terminou. Os «meus» marinheiros estão todos prontos para embarcar. Sei que, dada a excelência do grupo, não terão dificuldades em encontrar trabalho. Acredito que brevemente todos ou quase todos estarão a trabalhar no mar. Não nas pescas, que para isso é outro o curso a frequentar, mas ainda assim, trabalharão no mar.

E eu sei que, se já me preocupo de cada vez que ouço falar de acidentes fatais com pessoas das Caxinas, vou, a partir de agora, ficar com o coração ainda mais apertadinho e vou esperar que nenhum dos sacrificados seja um meu ex-formando.

Tenho, desde ontem, pensado muito em todos os meus alunos daquela zona. Espero que a infelicidade destas mortes não lhes tenha batido à porta. Espero que todos e todos os seus familiares estejam bem, mas sei que, mesmo que seja esse o caso, todos estarão inquietos, sobressaltados, tristes, acabrunhados. Mais uma vez, toda a população está de luto pela perda de mais alguns dos seus irmãos. Estas mortes tão prematuras de gente de trabalho duro atingem-me com toda a força, dão-me murros no estômago, e só tenho uma pergunta a fazer:

Pai, por que os abandonaste?

 

Comments

  1. Pedro Mendonça says:

    Chama-se livre arbítrio. A lei principal.

  2. Nightwish says:

    Por essas e por outras, o barbudo que se lixe.

  3. l.rodrigues says:

    O livre arbítrio é o alibi de Deus.
    “Ah, eu sou omnipotente, mas vocês é que sabem….”

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