Portugal 1975-2015: 40 anos de silêncio

acusar

Ficaram com os ódios e as raivas ali a arderem-lhes. Os ódios muito bem guardados para grandes vinganças vindouras que o destino pudesse favorecer. Escondidos nos sótãos fechados à chave dos seus espíritos, entrar neles dava cabo até mesmo de quem mal sabia por que razões, e embora ainda ardentes, haviam ali sido escondidos. As raivas debaixo do tapete, de onde contudo por vezes saíam, como cabeças de hidra que nenhum hércules pisava para não debelar numa só cabeça que fosse o que fôra guardado com tanta estima há mais de 40 anos. Ovos disso haviam eclodido aos milhares.

Nasceram novas pessoas e foram-lhes ensinados esses ódios e raivas. Quando atingiam uma certa idade, alguém mais velho levava-as lá acima ao sótão e, apontando para o que estava tapado com grandes panos que ninguém levantara desde que lá haviam sido postos, diziam

Estão ali.

Mostrado o esconderijo, apressavam-se a descer, procurando fugir das recordações que logo começavam a invadir-lhes os pensamentos. Dos tapetes escondendo os mais pequenos sentimentos torcidos, limitavam-se a informar

Não se varre ali debaixo nem se aspira.

As novas pessoas assentiam e não se falava nunca mais no assunto.

As novas pessoas não compreendiam muita coisa sobre o que se havia passado nesse outro tempo, como não compreende muita coisa sobre o passado recente quem não viveu em dias anteriores à sua própria existência. Sem surpresa, as novas pessoas tratavam os ódios e as raivas com o excesso de quem não os gerara, e por isso não os sofrera. Tudo na forma que os ódios e as raivas tomavam nas suas bocas era desproporcionado, apenas tendo interesse para estudiosos das transferências.

No lado oposto do patamar, havia um outro tapete, no acesso a uma outra casa, no acesso a um outro sótão. Eram o tapete e o sótão do vizinho, sobre quem um dia, se o destino o permitisse, se lançariam enfim os ódios e raivas do lado direito.

Gerado por tanto desejo, esse dia chegou, e as novas pessoas cavalgaram cheias de raiva e de ódio em direcção à casa do vizinho. Bateram à porta como se fossem rebentar com ela, e quando finalmente o vizinho a abriu, deparou-se com aquele exército de velhos ressentimentos e acusações anacrónicas.

Apesar de ser também ele uma nova pessoa, nascida depois dos acontecimentos sobre os quais nunca mais ninguém falara (e que por essa razão o tempo transformara num monstro), o vizinho foi sumariamente agredido com estranhas sentenças.

Administrador do condomínio só serás por cima do meu cadáver!

Ouviu-se então o som de alguém a falar no sótão da casa agora invadida por espectros. Era o avô do vizinho, a lutar com os seus próprios fantasmas, no sótão como debaixo de um temporal, fazendo oposição às fortes rajadas e bátegas com um capacete e um elmo que tinha trazido da URSS.

Comments

  1. José almeida says:

    Um comentador frequente do aventar costuma dizer que Salazar fez um “bom trabalho”. E fé-lo “com distinção”….

    Com todas as tacnologias actuais, a inteligência artificial, os avanços da química e bioquímica, …. descobre-se o ADN e tenta-se descodificar a composição química do nosso complexo corpinho, e, algo mais simples e útil, seja, “como tornar sã a maçã podre do cesto, mesmo que seja só uma no meio de dúzias?”

    Em função do provérbio, sinceramente, ainda me questiono como ainda existem maçãs não tocadas.

    Ou seremos mutantes?

    • Sarah Adamopoulos says:

      Tal como vejo a nossa existência, somos mutantes. De outros, e também de nós próprios. Somos uma metamorfose. Mas há coisas que por educação e pela cultura societal escapam à transformação. É disso que fala o texto.

  2. Há que continuar a creditar na esperança.
    O futuro somos nós.
    O acordo à esquerda será o desvanecer dos fantasmas.

  3. PBeirao says:

    Há poucas coisas mais tristes do que legar ódios e ressentimentos aos mais novos, gerados em acontecimentos que não viveram, como se fossem velhas heranças de família. É-se de esquerda, direita, monárquico, comunista, miguelista, etc. porque na família são todos de esquerda, direita, monárquicos, comunistas/miguelistas, etc. Herdam-se rancores do PREC, 28 de Maio, 5 de Outubro, lutas liberais, e ai de alguém que se atreva a desonrar os antepassados. Transforma os jovens em velhos ainda antes de começarem a viver.

  4. Uma das coisas que distingue os anti-comunistas dos comunistas é, precisamente, que os primeiros não têm de estar permanente a impor o seu enunciado político. Nada tenho contra as pessoas que são comunistas – falo com elas de bola, de comida, do tempo, mas certamente não de política, por muito que insistam (tal como deixei de falar disso com um amigo meu que, numa crise de adolescência, deu em “skinhead”). Até votei no Bernardino só para correr com o corrupto do PS que meteu 13 parentes na Câmara de Loures. Todavia, importa que fique claro, que “administradores do condomínio só serão por cima do meu cadáver!” (coisa que, reconheça-se, nunca foi obstáculo para o comunismo, nem para qualquer outro totalitarismo). O PCP segue à risca, e sem qualquer revisão, o credo que, na minha juventude, matou com balas nas costas milhares de europeus, apenas por quererem uma vida diferente. Eu vi os soldados nas torres e o terreno minado em Berlim e a miséria lúgubre e policiada escondida por detrás. O PCP, que não mudou nada, e se revê nisto, ou seja, no regime totalitário mais longevo e eficaz da história, que crê, sinceramente, que forma uma vanguarda, e que a injustiça se pode resolver pela violência e pela opressão, é um partido anti-democrático, que existe e é tolerado por um atavismo histórico (pois a nossa Constituição, e bem, proíbe partidos fascistas). Eu, e muitos como eu, entendemos isso, mas tal não implica que tenhamos de estar sempre a dizê-lo. Não porque fosse “um segredo”, mas porque, sinceramente, temos mais que fazer. Se o dizemos, agora, é apenas porque nos vieram perguntar

Trackbacks

  1. […] Ouviu-se então o som de alguém a falar no sótão da casa agora invadida por espectros. Era o avô do vizinho, a lutar com os seus próprios fantasmas, no sótão como debaixo de um temporal, fazendo oposição às fortes rajadas e bátegas com um capacete e um elmo que tinha trazido da URSS. [originalmente publicado no blog Aventar] […]

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