Ouvidos e esquecidos

(aviso: isto parece, mas não é sobre futebol)
Passa hoje o 30º aniversário da vitória do F C Porto na Taça dos Campeões Europeus. As televisões e os meus amigos portistas narram de muitos modos esta efeméride. Reportagens, memórias, festejos, palavras de exaltação clubista e portista. Tudo isto se compreende. Mas, mais uma vez – com excepção das vozes dos jogadores do tempo ouvidos – a figura de Artur Jorge parece esfumar-se. Era interessante percebermos porquê. É que há muito penso que, a dar um exemplo de desportista profissional, escolheria, entre muito poucos, Artur Jorge. Então por que razão este país que tão depressa incensa gente da bola como se fossem exemplos de excelência nacional e vértice da magnificência humana, esquece tal figura? É que os atributos do Artur Jorge estão nos antípodas do perfil que a imprensa e a opinião publicada “desportivas” sacralizam. Quer dizer: as qualidades de um dos maiores jogadores e treinadores da história do desporto português são exactamente o que o desqualifica para ser ídolo nacional-futebolista.
Artur pertenceu à última geração do futebol da Académica antes do cilindro da hiper-profissionalização alterar completamente as condições do desporto, sobretudo do futebol, e transferiu-se para o Benfica perante uma proposta irrecusável. Todavia, apesar do cepticismo dos seus amigos, ia decidido a completar a sua licenciatura em Filologia Germânica. Sei disto porque, involuntariamente, assisti à conversa – não ia deixar ia bife a meio, não é? – entre Artur Jorge e Toni sobre o tema, ao balcão do Tropical; com as dúvidas, as importâncias em causa, as condições oferecidas. Sobre tudo isto guardarei silêncio, como é óbvio, mas compreendo o que o levou a decidir como decidiu.
Artur Jorge fez uma carreira brilhante no Benfica e na Selecção Nacional. Campeão nacional por diversas vezes, elemento destacado do que era, na altura – eu sou insuspeito – uma das melhores equipas do mundo, tudo parecia um caminho para a glória. O que se passou então? Aconteceu que:
– Artur Jorge concluiu mesmo a licenciatura em Germânicas.
– Encerrada a carreira de jogador, foi fazer um curso superior de desporto e especialização em futebol. Num país de Leste – socialista! -, valham-nos os céus!
– Iniciou a sua carreira acumulando bons resultados e sucessos, o que o levou aos grandes. Acumulou títulos no FCPorto. campeonatos nacionais, taças, super-taças e o mais que viesse. Finalmente, foi campeão europeu e mundial com o seu clube; o primeiro português – ouviram mourinhólatras?
– Entretanto, contrariando as expectativas e hábitos do nacional-futebolismo, gastava o seu dinheiro em colecções de arte e – heresia! – publicava poesia.
– Durante a sua vida, desde os anos 60 em Coimbra, nunca se furtou a ter uma posição de cidadania activa e democrática, o que, geralmente, era olhado com desconfiança no mundo da bola.
– Pecado final: sendo perguntado sobre os comentários aos jogos então transmitidos pela televisão, declarou que, para não ouvir disparates, desligava o som e punha música clássica ou jazz. Estava, assim, feita a heresia final e alimentado o ódio da comunicação social.
– A sua carreira de treinador desenvolveu-se em vários países, adicionado ao seu palmarés campeonatos, taças, super-taças em França, na Rússia, na Arábia Saudita.
– O seu êxito trouxe-o ao Benfica, que, com problemas financeiros e uma equipa envelhecida, queria resultados de milhões com investimentos de tostões. Aqui, teve a infelicidade de sofrer uma cirurgia a um tumor cerebral que o afastou do trabalho algum tempo. O Benfica ficou em terceiro, mas já tinha ali um bode expiatório, cujo nome arrastou pela imprensa como culpado de todos os males. Porque lembro isto? Porque ainda ontem ouvi esta referência e ela é recorrente em alguns dos meus amigos benfiquistas nesta rede. Nostálgicos de glória, parecem não perdoar nada.
– Artur Jorge foi, assim, a primeira grande figura nacional com voz de comando no desporto internacional. Só encontramos semelhante em Moniz Pereira, no atletismo.

 

Comments

  1. Konigvs says:

    Artur Jorge foi esquecido dos média, como tantos outros, porque na sua profissão de treinador tornou-se uma completa nulidade. Depois que saiu que do Benfica – há bem mais de vinte anos! – não mais teve qualquer sucesso desportivo e andou a penar de clube em clube ou de seleção em seleção – e até a Seleção Portuguesa treinou – e onde só ficava quase só uma época desportiva porque só tinha maus resultados. E se os treinadores deixam de ter protagonismo (seja lá pelo que for) a imprensa esquece-os, como é normal. Ninguém corre atrás de quem perdeu protagonismo mediático.

    Temos até neste momento, outro português, que daqui por outros vinte anos, alguém também pode escrever maravilhas, que é Vilas Boas. Também Vilas Boas apareceu, ganhou tudo no FC Porto e cinco anos depois, só teve aceitação na China, país que geralmente só contrata velhotes em fim de carreira, como os nossos conhecidos Eriksson (também ele genial treinador no seu tempo e um cavalheiro) ou Scolari.
    Mas Vilas Boas nem 40 anos tem!

    Houve até o presidente de um clube inglês que teve oportunidade de contratar Vilas Boas (ainda antes de ser conhecido) e disse que ficou muito impressionado com ele, mas disse que não o contratou – porquê? Disse que ele era tão inteligente, que tinha um currículo tão bem escrito e era tão bem formado, e que falava um inglês tão perfeito, que achou que os jogadores não iam perceber patavina do que ele dizia!

  2. Fernando Manuel Rodrigues says:

    Acho que tem toda a razão em recordar Artur Jorge. Eu, pela minha parte, não o esqueço, nem esqueço a sua quota-parte nesse grandioso momento que foi a conquista da primeira Taça dos Clubes Campeões Europeus pelo F C Porto.
    Quanto è efeméride, tirando os portistas, não vi qualquer referência, nomeadamente nas cadeias de televisão nacionais (andam muito ocupados a falar do tetra do Benfica).

  3. Nome Obrigatório says:

    Coveiro dos encarnados

    “Nas duas épocas que Artur Jorge planeou, foram dispensados, vendidos ou acabaram a carreira, jogadores como Rui Costa, Schwarz, Kulkov, Yuran, Isaías, Vítor Paneira, Rui Águas, Veloso, Silvino, entre outros.Nas contratações o caso toma proporções épicas, tirando Preud’Homme, atente-se nos jogadores que o iluminado treinador mandou contratar: Nelo, Tavares, Paulo Pereira, Paulão, Paulão Coice de Mula, Akwá, Rui Esteves, Clóvis, Marcelo, Marinho, Iliev, Mauro Airez, Panduru, Luís Gustavo, Hassan, Paredão, King. O que dizer de um treinador que contrata, para o Benfica, jogadores deste nível? (…) Segundo a imprensa da época, Artur Jorge recusou ainda jogadores como Klinsman, Whea e depois de ter Edilson não exigiu a sua continuidade no plantel. A sua bandeira foi apenas os regressos dos consagrados Ricardo Gomes e Valdo que já estavam na pré-reforma. Foi também falada na altura, a reestruturação nos planteis das camadas jovens do Benfica levada a cabo pelo treinador. Muitos jogadores foram dispensados ou recusados. Vários foram parar aos rivais, ou mesmo a clubes de menor nomeada. Para mim, ninguém me tira isso da cabeça (peço perdão pela intricada teoria da conspiração): Artur Jorge veio para o Benfica com uma clara missão: a mando de alguém, veio para diminuir o futebol do Benfica.”

    (daqui: http://relvado.aeiou.pt/benfica/coveiro-encarnados)

    • Konigvs says:

      Mas isso também é uma opinião muito tendenciosa, até porque Artur Jorge nunca foi conhecido por querer planteis baratos, mas quando o Benfica não tinha ovos tem que se improvisar. E quando determinado treinador, como foi público, quer treinar determinado clube, será sempre o primeiro a querer ganhar. Mas quando não se ganha, por norma os adeptos são como um soldado com a metralhadora descontrolada: disparam em todas as direções, incluindo contra si mesmo.

    • A ficção que constitui o seu texto, Nome Obrigatório, é música conhecida. O Benfica, ao tempo, tinha de renovar uma equipa envelhecida e não tinha dinheiro. Essa é a verdade. Artur Jorge, mesmo assim, aceitou o desafio. Fez mal. Passou a ser culpado, para todo o sempre, de uma decadência do velho Benfica europeu, já que as condições do futebol internacional também iam mudando. Acresce nem uma grave cirurgia a um tumor cerebral que ocorreu nessa época, funciona como atenuante da frustração dos benfiquistas mais fanáticos. Artur podia ter deixado o Benfica, mas não o fez. Fez mal. Só respondo ao seu texto porque essa perspectiva é muito divulgada. As duas últimas frases não me merecem comentários. São coisas que pura e simplesmente não se dizem.

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