Mudar de casa, de casa, de casa

Oh as casas as casas as casas

Ruy Belo

Há pessoas que nunca mudaram de casa. Outras, como eu, quase perderam a conta às casas que habitaram. Mudo agora para uma casa a pouco mais de quinhentos metros da anterior, onde vivi doze anos, um recorde absoluto para mim.

São doze anos de objectos acumulados, de coisas com maior ou menor valor, de lixo, de inutilidades guardadas, de pequenas preciosidades, de memórias, de artefactos que pensamos duas ou três vezes se levamos, ou não, para a casa nova. São dezenas de hesitações, bugigangas que deitamos para o caixote do lixo e, passados minutos, regressamos para recuperar e que, pouco depois, rejeitamos de novo.

Doze anos sem mudar de casa são, no meu caso particular, doze anos de papeis acumulados, fragmentos de poemas, frases com sentidos desconexos, pensamentos incompletos, rabiscos, desenhos em guardanapos, apontamentos, números de telefone sem a indicação do nome a quem pertencem, cartões de visita com apelidos e ruas que não recordo, os primeiros (e os segundos e terceiros) bonecos desenhados pelos filhos, as primeiras palavras caligrafadas, trabalhos do dia do pai, postais do dia da mãe, infantilidades do dia da flor. Novas hesitações porque aquelas representações não nos pertencem, somos apenas depositários delas em nome deles, algumas têm de ficar para trás, não podemos levar tudo, há que fechar os olhos e deitá-las fora, ou rasgá-las imediatamente para que o arrependimento não nos vença.

Mudar de casa é fazer contas à vida, sopesar o tempo, despertar memórias, confrontar-se com o apego e o desapego, triar o útil e o inútil, maldizer o consumo excessivo, sujar as mãos no passado, respirar o pó do que já fomos. [Read more…]