Apontamentos & desapontamentos

O meu amigo José Pedro Machado deu-me muitas lições em vida. À mesa do restaurante «O Pardieiro», no Largo da Graça, onde almoçávamos em regra uma vez por mês, na «Chineza» da Rua do Ouro, onde muitas vezes tomávamos o pequeno-almoço num grupo de amigos, na sua maioria seus ex-alunos, no meu gabinete da editora, onde fazíamos reuniões de trabalho, ou na Livraria Portugália, onde ia todas as manhãs, ensinou-me coisas, sobre as mais variadas matérias, que eu lhe perguntava ou esclarecia dúvidas que surgiam durante as conversas. Grande filólogo, tinha aquilo a que se chama uma cultura enciclopédica que ia muito para lá das fronteiras da sua especialização científica. Obrigou-me, tal como aos outros amigos, a tratá-lo por tu, embora tivesse idade para ser nosso pai. Não dizia, como muitos, que era democrata – praticava a democracia. Em 27 de Julho de 2005, acometido de doença súbita, deixou-nos. Todavia, o seu «Grande Dicionário da Língua Portuguesa» é para mim um companheiro inseparável. Não sabe tudo, mas sabe muito. Raramente não responde ao que lhe questiono e nunca me desapontou. O meu amigo continua a ensinar-me. Obrigado José Pedro!

Apontamento, todos sabemos o que significa (nota, registo, lembrança, resumo de algo que se leu…). Desapontamento tem talvez mais que se lhe diga. Vejamos substantivo masculino. Acontecimento desagradável que causa surpresa; decepção por falta daquilo com que se contava…» Todas estas acepções, esclarece-nos também, são provenientes de anglicismos, pois provêm da palavra disappointment. Pois na acepção portuguesa desapontar significa desfazer, riscar, anular o que se apontou (anotou, registou, etc.). O que, de certo modo, também me serve.

Ao longo da vida, tenho tomado muitos apontamentos (alguns dos quais não me serviram até agora para nada) e muitos são também os desapontamentos que tenho sofrido. Também não têm tido grande utilidade. Nestas séries de mini-crónicas vou dar-vos conta de alguns desses apontamentos e desapontamentos (também se pode dizer desaponte ou desaponto – do inglês disappoint). Este é um caderno onde não escrevo. É um caderno de onde vou arrancando folhas com apontamentos sobre decepções ou sobre temas que em certos momentos me interessaram, apaixonaram mesmo em alguns casos. E que ou me desapontaram ou me deixaram de preocupar. Hoje, para não começarmos com pessimismos, sai um apontamento sobre a função da catarse (e dos blogues).

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Catarse, substantivo feminino, é a expulsão daquilo que, sendo estranho à essência ou à natureza de um ser, o corrompe. É um processo de purificação. Embora não pareça, catar, o verbo transitivo, na sua forma reflexiva catar-se, tem um significado muito semelhante, embora mais popular. Enquanto catarse nos remete para o classicismo grego, para o orfismo, o pitagorismo, o platonismo ou para acepções mais técnicas, do foro da psiquiatria, o verbo catar, menos clássico, mais democrático, lembra-nos mães, às portas de suas casas em bairros pobres espiolhando os filhos ou, numa versão mais National Geographic, chimpanzés catando-se mutuamente (porque os sais que extraem das pelagens fazem falta à sua dieta – não sei se isto é verdade. A Dra. Jane Goodall, grande especialista no estudo da espécie, não o confirma). O blogue é uma forma moderna de catarse. Moderna e barata, pois os psiquiatras não cobram pouco… É também uma forma de cada blogger se catar, limpando-se de obsessões, ou de os bloggers se catarem mutuamente, extraindo uns dos outros os sais necessários ao seu equilíbrio emocional. Catarse = catar-se. O português não é uma língua traiçoeira – é como um cão fiel e bonacheirão – desde que tratada com respeito, não nos morde. Mas voltemos aos blogues, esquecendo a sua função catártica e voltando-nos agora para a sua vocação comunicacional.

Numa entrevista dada no Brasil em Janeiro de 2009, o entrevistador pergunta a José Saramago se acredita que a organização das pessoas em rede, permitida pela explosão dos blogues, poderá ser um motor para a mudança social no futuro. Ao que o escritor responde: «Eu tenho umas quantas dúvidas. Quando aparece um caso como o da Internet, com a potencialidade que apresenta de comunicação, de troca de ideias, as pessoas falam de revolução pela Internet, mas no fundo somos ingénuos e vamos continuar a ser, aconteça o que acontecer. Não sei como essa revolução se daria. A Internet daqui a dez anos talvez não seja o que é. Nós estamos livremente na rede, não sei se em dez anos essa liberdade será permitida. E mesmo que isso não aconteça, há uma questão central: quem é que está no poder? Estamos nas mãos do poder e, portanto, é-nos praticamente impossível propor uma alternativa económica, sem uma alternativa política e social. Podemos organizar-nos em rede e fazer uma manifestação nas ruas, mas no dia seguinte acaba. Porque os meios de comunicação podem simplesmente decidir não falar dela. E se não falam dela, a manifestação não existiu e acabou».

Grande verdade, Saramago – hoje em dia, o que não é relatado pela comunicação social, é como se não existisse. 

Comments

  1. Com vista a uma mudança social através da internet, a explosão dos blogues é um tiro nos pés.Se houvessem tantos serviços noticiosos como blogues, estes perderiam a importância que têm, precisamente por existirem em demasia.O mesmo se passa com os blogues. Quantos mais blogues houverem, menos importância terá cada um deles. Neste momento, qualquer pessoa pode ter um blogue onde publica as maiores parvoíces, ou as sentenças mais acertadas.A meu ver, ainda vai sendo possível distinguir o bom do mau, mas, continuando esta dita explosão, não sei por quanto tempo esta possibilidade durará.E a verdade é que contra mim falo, porque, para o bem ou para o mal, contribuo para o aumento dos blogues…

  2. Carla Romualdo says:

    a verdade é que nunca me desaponto com os seus textos, Carlos

  3. Carla, se Saramago representasse a alma lusa, eu queria ser vietnamita! ODEIO-Em tudo!

  4. maria monteiro says:

    “A”, nem A Viagem do Elefante?

  5. Carla Romualdo says:

    Eu não sou fã mas gosto do Ano da Morte de RR

  6. Luis Moreira says:

    O Carlos Loures é um aventador de primeira água…

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