Falando de democracia: A era americana

Os Estados Unidos da América, pela límpida voz dos próceres da sua independência, nomeadamente a de Thomas Jefferson, principal autor do texto da Declaração da Independência, proclamada em 4 de Julho de 1776, foram no final do século das luzes um farol de liberdade que ofuscou as candeiazinhas do iluminismo. Diz a Declaração em certo passo – «a prudência recomenda que não se mudem os governos instituídos há muito tempo por motivos leves e passageiros.» (…) «Mas quando uma longa série de abusos e usurpações, perseguindo invariavelmente o mesmo objecto, indica o desígnio de reduzi-los ao despotismo absoluto, assiste-lhes o direito, bem como o dever, de abolir tais governos e instituir novos Guardiães para sua futura segurança». Palavras que os revolucionários franceses beberam, seguindo o exemplo americano treze anos depois. Porém, em pouco mais de dois séculos, esse capital de esperança foi dissipado, a luz radiosa do american ‘dream transformou-se no buraco negro onde a liberdade e a democracia se precipitam e desaparecem, passando para uma realidade paralela – «a realidade americana».
Nos Estados Unidos existe uma quase ilimitada liberdade de expressão. Centrais de inteligência, como a CIA e o FBI, são em livros, em filmes, em séries televisivas, acusados das mais torpes felonias de uma forma que não sei se a PJ ou o CIS aguentariam. Não se pode deixar de apreciar aquilo que aparece como uma transbordante capacidade de autocrítica. Porém, essa facilidade de denunciar ficcionando, banaliza o crime e as prepotências dessas centrais. Até porque, geralmente, não são as centrais ou as instituições propriamente ditas que são acusadas, mas indivíduos corruptos ao seu serviço. Nesta ânsia de efabular a perversão, nem o Presidente escapa. Estou a lembrar-me de um filme, Poder Absoluto (Absolute Power, 1997), realizado por Clint Eastwood, em que o criminoso é precisamente o presidente dos Estados Unidos, interpretado por Gene Hackman. É a teoria da conspiração em todo o seu esplendor.
Quando as coisas acontecem fora dos ecrãs ou das páginas dos romances de aeroporto, em Guantánamo, no Iraque ou no Afeganistão, a maioria dos cidadãos norte-americanos acha normal. Em suma, tudo o que de negativo existe na sociedade norte-americana pode ser denunciado e criticado – do racismo à tortura. As maiores felonias e as mais sinistras conspirações são antecipadas. O efeito é perverso. Se amanhã os Estados Unidos decidirem lançar bombas nucleares sobre o Irão, muitos americanos acharão normal – encolherão os ombros e dirão – já vi este filme.
Naturalmente que esta acefalia colectiva não traça um retrato de corpo inteiro da sociedade norte-americana – há uma percentagem elevada de americanos inteligentes, cultos, bem informados e preocupados com o rumo que as coisas estão a tomar. Porém, na sua maioria, os norte-americanos confundem o seu mundo com o Mundo. É vulgar o vencedor da final de qualquer desporto que só ali se pratica ser designado por «campeão do mundo». Para a maioria dos norte-americanos, o «mundo» são eles; os outros continentes e países, arredores insignificantes. É assim desde a Segunda Guerra Mundial, quando após a grande depressão de 1929 e que se prolongou pelos anos 30, os Estados Unidos emergiram com grande potência. O colapso da União Soviética que dividia com eles a tarefa de dirigir e policiar o planeta, deixou-os sozinhos e entregues ao seu grande poder que é, também a sua maior fraqueza – a invasão do Iraque, para falar numa das mais recentes demonstrações da sua «omnipotência», foi, pode dizer-se, decidida unilateralmente pelo gabinete de George W. Bush. A União Europeia foi um mero figurante (com a Grã-Bretanha a assumir o papel de embaixadora de «deus» aqui na terra…).
O realizador cinematográfico francês Alain Resnais, o director de «Hiroshima, mon amour» (1959) e de «Mon oncle d’Amérique» (1980), disse numa entrevista que era doloroso «viver na era americana e não ser americano». Isto foi dito há quarenta anos, talvez, quando ainda nós, europeus, não nos tínhamos apercebido totalmente da carga de perversa prepotência existente na democracia americana, embora tivéssemos já elementos históricos para tal (o lançamento de duas bombas nucleares sobre o Japão, por exemplo). Hoje em dia, o inglês impôs-se como língua franca e não foi por mérito ou pressão da Grã-Bretanha que isso aconteceu, pois enquanto a Grã-Bretanha, no século XIX, foi a principal potência mundial, o francês era a língua internacional por excelência. A american way of life constitui um modelo implantado à escala global, desde os cereais do pequeno-almoço até às séries televisivas e aos programas com que preenchemos os serões. Sentimo-nos como se deviam sentir os nossos ancestrais depois da ocupação romana da Península – obrigados a arranhar o latim e a adoptar hábitos e leis impostos desde Roma. Viviam na era romana e não eram romanos – dissolveram-se no decurso do processo de romanização. Mas o Império Romano também não durou eternamente, dissolvendo-se na corrosão do tempo, da sua degenerescência, do seu próprio poder. Não há impérios eternos. Porém, sempre duram mais do que aqueles que lhes profetizam o fim.
Duram sempre demais.

Comments

  1. Uma magnífica análise. Mas faltou dizer que muita da importância política, militar, social, económica e cultural dos EUA deve-se a cidadãos não norte-americanos. Deve-se a muitos europeus, bastantes asiáticos, africanos e latinos.

  2. José Freitas: tem toda a razão. Só não o disse porque o facto de a sociedade norte-americana ser um mosaico de culturas e de contributos de imigrantes de todo o mundo, é um dado adquirido. Mas que fique o registo. Um abraço.

  3. Totalmente de acordo. Parabéns pela lúcida visão. Em breve aqui colocarei um texto sobre a América, como eu a vejo, que gostaria que o amigo carlos Loures lesse. Um abraço

  4. Adão Cruz: Obrigado. Lerei com toda a atenção. Um abraço.

  5. Luis Moreira says:

    Carlos, és um livro aberto na página certa.

  6. Obrigado Luís. Quando não gastas cera com ruim defunto, também gosto dos teus textos. Abraço.

  7. isac says:

    Muito bem. A propósito, lembro-me dum ícone americano pouco conhecido, o Philip K. Dick, ter dito que o “império nunca acabou” alertando que o império romano não desapareceu e continuou mascarado no império americano. ele acreditava mesmo nisto, mas também acreditava que era perseguido pelos serviços secretos. Isto de ser americano tem sempre algo de paranóico… Junto mais dois filmes, do Denys Arcand com uma visão do império americano, visto do lado de lá, do Canadá: O declínio do império americano e o recente acrescento, as invasões bárbaras.

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