Apontamentos & Desapontamentos: Viajando por Cuba

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Apesar do desapontamento (que se seguiu ao fascínio), quando em 1962, na sequência da chamada «crise dos mísseis», para se proteger dos Estados Unidos, Cuba foi forçada a transformar-se num satélite da União Soviética, aqueles primeiros três anos da Revolução Cubana, tal como os 18 meses da nossa Revolução dos Cravos, foi algo que marcou os jovens daquela época. Não escapei à regra. Ouvir o verbo emocionado e emocionante de Fidel, lendo na Praça da Revolução, as declarações de Havana, particularmente a segunda, era arrepiante. Daí este apontamento.
Embora as minhas ilusões sobre a Revolução Cubana há muito tivessem morrido, era um projecto meu visitar Cuba, como quem revisita a juventude e algumas das ilusões perdidas (porque há outras que nunca se perdem e é isso que nos mantém vivos). Há poucos anos atrás, com a minha mulher e um casal amigo, metemos mãos à obra. As agências só ofereciam pacotes inaceitáveis – três dias em Havana e quatro em Varadero. Mas nós íamos lá fazer uma viagem de tantas horas, atravessar o Atlântico para ir à praia, com a Caparica, as praias da linha ou o Algarve aqui tão perto? Lá descobrimos uma alternativa aos pacotes usuais. Uma boa alternativa que agora vejo que já está mais divulgada. Um carro de aluguer à nossa espera no aeroporto de Havana, hotéis reservados por um itinerário escolhido por nós, a começar e a acabar na capital – Havana, Matanzas, Cienfuegos, Sancti Spíritus, Camagüey, Ciego de Ávila, Santiago de Cuba, Trinidad, Santa Clara, Havana… Tudo por um preço razoável, pouco acima do que custavam os tais pacotes usuais. Durante duas semanas percorremos quase quatro mil quilómetros, vimos o que queríamos, sem guias turísticos a incomodar-nos. E lá fomos à Baía dos Porcos, ao Quartel de Moncada, à Sierra Maestra, ao museu da Revolução, a todos os lugares de culto. Visitámos Havana em pormenor, fomos aos locais frequentados por Hemingway, e até almoçámos em Varadero. Varadero é um local de veraneio, sem nada de especial (a não ser o mar maravilhoso das Caraíbas) – Hotéis, edifícios de apartamentos, etc. Nada, nesse aspecto, que Vilamoura ou Torre Molinos não tenham – tal como pensávamos, não se justifica ir tão longe. Mas o nosso itinerário foi uma maravilha.
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Falámos com muita gente. Pudemos verificar que, apesar de algum medo à repressão (que inegavelmente existe), as pessoas falaram connosco com à-vontade. Encontrámos mais descontentes nas grandes cidades, Havana e Santiago, principalmente. De facto, as condições de vida são constrangedoras. Racionamento dos bens mais elementares – lâminas de barbear, pensos higiénicos, géneros de primeira necessidade, arroz, ovos, leite, tudo é racionado. As casas de Havana, algumas lindíssimas, estão em ruínas. O turismo é uma das saídas. Cozinha-se em casa para os turistas. São os chamados «paladares», alternativas aos restaurantes. Combina-se previamente, escolhe-se a ementa e à hora combinada lá temos a mesa posta e anfitriões dispostos a deixar-nos sós ou a conversarem connosco, como preferirmos. Pelas ruas andam pessoas das mais diversas idades a cooptar clientes para os paladares. Em Ciego de Ávila um professor universitário de avançada idade andava nesta tarefa, recitando de memória poemas de Nicolás Guillén. Para não falar da prostituição, mais ou menos encoberta, que pessoas normalíssimas, qualificadas, quase todas com cursos superiores, se vêem obrigadas a praticar para completar ordenados baixíssimos. A prostituição em Cuba é, de uma maneira geral, uma forma desesperada de sobrevivência
Nos campos, sobretudo em granjas colectivas, encontrámos mais adeptos do regime, gente saudando-se de punho cerrado. Também é verdade que nos campos a vida não é tão difícil, pois os bens alimentares essenciais são ali criados e, portanto, escasseiam menos. Porém, numa coisa todos estão irmanados, fidelistas, antifidelistas: no ódio ao ianque. Mesmo os opositores ao regime, têm consciência de que sem o bloqueio norte-americano, o povo não sofreria tanto.
É evidente que o bloqueio tem perpetuado a ditadura e impedido o advento da democracia. Toda a gente sabe isso. Só a CIA e a Casa Branca se obstinam em não o reconhecer. E Obama, que parece ser mais inteligente do que a generalidade dos antecessores, poderá, mesmo que queira, contrariar a CIA e os falcões do Pentágono?

«Vamos bien» diz cartaz. Não. Não vão nada bem. Vão até bastante mal. Em todo o caso, vão sobrevivendo, o que só por si já constitui um milagre.

Comments

  1. Luis Moreira says:

    Carlos, achas que agora estão reunidas as condições para o bloqueio ser levantado ? De uma e outra parte?

  2. Acho que sim. A não ser que os Estados Unidos continuem a ver fantasmas. Cuba tem um regime autoritário, é verdade. E a China? Por que motivo não fazem os Estados Unidos um bloqueio à China? O bloqueio só será levantado quando todos os cubanos tiverem morrido de fome? É uma teimosia, uma obstinação da CIA, que já não tem sentido. Levantado o bloqueio, a situação política de Cuba ir-se-á normalizando. Raul Castro já deu mostras de querer aligeirar os mecanismos de defesa criados por Fidel. Assim fidelistas e antifidelistas estão unidos no ódio ao ianque. E vão resistindo. Mas é chocante a forma como vivem, sobretudo nas cidades. Abraço.

  3. Um excelente percurso, Carlos. Mas estranhei não ler uma linha sobre uma das grandes riquezas de Cuba (não, não é a medicina): a música. Falhou alguma coisa nesse itinerário?

  4. Sim, José, falhou. Nesse capítulo não tivemos sorte. Íamos com esperança de ouvir, senão o grupo todo, alguém do Buena Vista Social Club. Fomos em Abril e, soubemos depois, o Compay Sergundo já estava doente e viria a morrer em Junho ou JUlho. Por isso, nenhum deles estava a actuar na altura. ´Porém música, tivemo-la ao pequeno-almoço, ao almoço e ao jantar. Por todos os hotéis, restaurantes e bares, actuam grupos musicais. Além dos paladares e da prostituição, a música é outra forma de combater a miséria. Alguns desses músicos são muito bons. Outros nem tanto.

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