elogio da música portátil

Isto de se calcorrear a cidade com os auscultadores nos ouvidos confere às vezes um inesperado sentido poético ao mundo. As árvores da rotunda da Boavista, para não ir mais longe, com a Sarah Vaughan a cantar baixinho ao nosso ouvido, ganham uma tonalidade suavemente dourada e quase melancólica. Lamenta-se a doce Sarah que as canções de amor não são para ela e que apenas tem encontrado nuvens cinzentas no seu caminho, e vemos por instantes o mesmo lamento no rosto desta rapariga de piercing no sobrolho e cabelo avermelhado, que tem os olhos húmidos e vai mordendo o lábio para segurar o pranto.

Quando se escuta Amelita Baltar, a que não tendo sido a primeira mulher de Piazzolla foi a última, os passos ritmados destes homens e mulheres que vão cruzando a passadeira transformam-se em movimentos cheios de graça de um tango pleno de paixão e de fúria, e as palavras que eles e elas proferem, e que a música não me permite ouvir, quem sabe não estarão nesse indecifrável lunfardo nascido nos bairros pobres de Buenos Aires? E saibam que os Rolling Stones bem podiam sentar-se ao lado do adolescente arreliado, que se encostou ao vidro da janela do metro e faz todo o percurso com os braços cruzados e o rosto fechado, e contar-lhe o que aprenderam, que não se pode ter tudo o que se quer, mas pode conseguir-se aquilo de que se precisa, haja tempo e sabedoria para tanto.

Comments

  1. Fernando Dionisio says:

    O teu texto fez-me parar e reler.Um bom momento no meu dia.

  2. Carla Romualdo says:

    Ainda bem, Fernando, este passa a ser um bom momento no meu dia

  3. Luis Moreira says:

    Carla, belo texto, as tonalidades do verde das árvores mudam com as emoções transmitidas pela música…

  4. maria monteiro says:

    Tempo, sabedoria… que seja também um bom momento de relfexão para quem ande “deprimido e em baixo…crise existencial profunda” A-migo isto é para si…

  5. RicardoF says:

    Realmente a música é capaz de nos fazer viajar por estes mundos e por outros…. Grandes textos.Já agora permitem-ne aconselhar este vídeo: Benjamin Zander on music and passion (http://www.ted.com/talks/benjamin_zander_on_music_and_passion.html).É uma apresentação de 20 minutos, mas penso que vale a pena.Cumprimentos.

  6. RicardoF says:

    Outra coisa, a música portátil pode ser muito boa, mas penso que a música de rua por vezes nos consegue surpreender ainda mais. Especialmente quando vamos a deambular por ruas ou por praças e encontramos alguém a tocar a música certa no local certo.Cumprimentos.

  7. Luis Moreira says:

    É verdade Ricardo, já ouvi música fantástica em ruas de todo o Mundo.

  8. Carla Romualdo says:

    Pois é, Ricardo, eu é que não tenho tido a sorte de ter esses encontros. Parece-me que o link não funciona (ou será um problema meu?)

  9. RicardoF says:

    Realmente o link não funciona. Como acho que vale a pena, aqui vai de novo:http://www.ted.com/index.php/talks/benjamin_zander_on_music_and_passion.html ouhttp://www.youtube.com/watch?v=r9LCwI5iErEO vídeo é sobre isto: “Benjamin Zander has two infectious passions: classical music, and helping us all realize our untapped love for it — and by extension, our untapped love for all new possibilities, new experiences, new connections.”

Discover more from Aventar

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading