O DIAGNÓSTICO

O DIAGNÓSTICO

(Mais um conto da Guiné. Espero que saboreiem como eu saboreei)

O sol baixava a sua fogueira comendo a sombra à medida que a luz crescia. Como sempre, meti o corpo dentro de uma velha bata branca e dirigi-me ao posto de socorros, onde me aguardavam soldados e nativos para a consulta matinal. Hora respeitada. Ritual.
Logo que cheguei, os olhos caíram-me na figura de uma velha cuja idade mirrara na secura das carnes. A pele parecia colada aos ossos e a silhueta nem sombra dava. Os sorrisos esqueceram-se para lá da boca, e dois ninhos de rugas guardavam os olhitos faiscantes.
O “Manjaco”, nome da etnia de que era originário, um dos meus ajudantes nestas tarefas clínicas, alto e desengonçado, sempre feliz e afável, surgia acima de todas as cabeças.
– Manjaco, vamos ao trabalho.
-Dotô, manga pessoal, manga chatice!
Quando chegou a vez da velha, o Manjaco torceu o nariz, dando a perceber que era de língua difícil e de terra sem lugar, lá onde acabam bolanhas e começam mangueiros e coqueiros. Por universal defeito de raças e linguagens as nossas falas não se cruzaram. O Manjaco olhou em volta procurando intérpretes para aquele resto de corpo. Bateu o pé no chão para espantar a pequenada, debruçada na curiosidade.
-Maldita canalha, maldita velha qui só vem no chateanço. Tu, vem cá, e tu.
Os dois rapazes entreolharam-se como se mutuamente se desconfiassem. Um deles era mandinga e o outro não me lembro.
Puseram a velha a queixar-se. Ela sacudiu os ossos em imitação de tosse, ao mesmo tempo que apertava entre os dedos a pele seca da garganta. Numa espécie de dança, mexia o corpo para a frente e para trás baloiçando a magreza. Agitava-se em tremuras fingidas, emitindo uma espécie de grunhidos salpicados de baba, enquanto as mãos apanhavam o baixo-ventre ou se espalmavam nas hipotéticas ancas. O Manjaco ia observando toda aquela mímica com ar enfastiado:
-Ché! A velha é maluca!
Olhou de maneira inquisidora os dois moços, apontou para a velha, e já com a paciência a apagar-se, exclamou:
-Fala pá, fala maleita di velha.
Os dois esquinaram o olhar, torceram a boca, e a aflição somou as duas caras. O primeiro virou-se para o segundo e disse numa lenga-lenga:
-“blá, blá, blá.
O segundo voltou-se para o Manjaco e traduziu:
-blé, blé, blé.
O manjaco encolheu os ombros, esboçou o gesto de quem nada percebeu, olhou-me de soslaio e exclamou:
-Dotô, isto estar grande merda!
De novo solicitada, a velha repetiu a cena escorrendo as palmas das mãos pelas pernas abaixo, esboçou um espasmo figurativo de dor, enroscou-se num ar felino e cravou os olhos desafiadores na cara do Manjaco. Disso é que ele não gostou. Com ar zangado, agarrou os dois rapazes pelos ombros, e numa última tentativa interpelou de novo:
-Tu ca sabi pá, tu ca sabi puto língua di velha, puxa por mimória, pá. O primeiro virou-se para o segundo e disse:
-Blá, blá, blá.
O segundo voltou-se para o Manjaco e traduziu:
-Blé, blé, blé.
O Manjaco não atingiu e enraivou o anterior desabafo, espaçando as palavras:
-Dotô,…isto…estar…grande…merda!
Caracoleou então por entre queixas e deixas, desmontou os arrebiques da velha, denunciou a incapacidade dos intérpretes, e bufou de furor e impaciência. Tomou ele a iniciativa. Ensaiou uma cantoria zombeteira e atirou à cara da velha uma autêntica algaraviada. Furiosa, a mulher fez assomar ao nariz uma lágrima de ranho, fincou no chão os pés calçados de lama seca, olhou os dois intérpretes, fulminou o Manjaco, calou uns segundos de silêncio e voltou aos mesmos gestos e grunhidos, com força redobrada e descrição veloz, como cena de filme a correr em acelerado. Parou de repente, fitou de maneira desafiadora os circunstantes e cravou pela primeira vez os olhos em mim, como que a dizer:
-Então, já percebeste?
O Manjaco estava desorientado. Começou a dar uns passos curtos e outros compridos, rodopiou sobre si mesmo, volveu os olhos ao céu, e a despeito da vontade de estrangular a velha, voltou-se calmamente para mim e disse:
Olha Dotô, corpo de ela tá todo fodido.

                (manel cruz)

(manel cruz)

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