Falando de democracia: A televisão e o computador significarão a morte do livro?


Livraria Lello, no Porto – uma das mais belas do mundo.

A democracia é indissociável do livro. Hoje, falando de democracia, vou falar do livro. E começo por transcrever palavras de José Afonso Furtado em O Que é o Livro: «Uma das imagens recorrentes em diversas obras que se dedicam a problemas de História ou da Sociologia do Livro e da Leitura é uma passagem clássica do romance Nôtre-Dame de Paris, de Victor Hugo. Nela, o arcediago abre a janela da sua cela, contempla por algum tempo a Nôtre-Dame, estende a mão para o livro impresso aberto na sua mesa e, lançando um olhar triste para a igreja, profere a conhecida frase: ceci tuera cela.». Embora como José Afonso Furtado diz, este imagem seja recorrente, utilizo-a mais uma vez porque facilita a compreensão do que quero expor. Segundo o próprio Victor Hugo explica depois, a frase dita pelo arcediago Claude Frollo (o protector de Quasímodo), reflecte o espanto e o receio do sacerdócio, naquele final do século XV, perante o “prelo luminoso de Gutenberg”, o confronto entre a palavra escrita e a palavra falada. Por outro lado (como refere McLuhan) a arquitectura gótica, a escultura, a iluminura ou a glosa medievais eram suportes da arte da memória e o eixo da cultura da escrita. Temia-se que o advento da imprensa pusesse tudo isso em causa e em risco de extinção.
Tal como nesse fim do século XV se temia que um avanço como o que a imprensa significava, pusesse em risco a forma mais popular de comunicar com as massas – a arquitectura gótica, através das quais multidões de gentes iletradas, que faziam das catedrais o seu local de encontro e de passeio dominical (tal como hoje as famílias vão ao centro comercial) «liam», nos elementos escultóricos de pórticos, túmulos, capelas e retábulos, passagens das Sagradas Escrituras, teme-se agora que as novas tecnologias da informação ponham o livro em risco de extinção. Penso que se trata de um falso receio e de um falso problema. Embora, indubitavelmente, o cenário mude – já mudou – e os editores tenham de se adaptar a ele. O feeling que têm usado como sistema, vai deixar (se é que não deixou já) de ser suficiente – vão ser necessários investimentos, nomeadamente na área da formação. As novas tecnologias só podem ser aliadas do livro, nunca adversárias. Concorrentes, sim, inimigas, não. Mas isto, se os editores estiverem apetrechados, inclusive com formação específica que desde há cerca de quinze anos existe, tendo começado com um curso de especialização na Faculdade de Letras de Lisboa e existindo agora outros cursos na Católica e na Nova. Na realidade, do mesmo modo que é impensável um médico ou um engenheiro autodidactas, deveria pôr-se na gaveta das recordações o editor «sem mestre, mas com jeito», como diria o José Fanha. Os editores continuam a publicar por feeling. E não nego que existem pessoas no mundo da edição com uma espécie de sexto sentido. Mas até esse sobredotados às vezes se enganam. Vejam só o perigo que seria se os farmacêuticos, em vez da formação científica que recebem, actuassem por feeling. Ele era aspirina para a queda do cabelo, xarope anti-tússico para as varizes e por aí fora. A edição é uma ciência. A vocação é necessária, mas a formação é indispensável.

Porque a crise do livro é endémica. Quando, há muitos anos, cheguei ao meio editorial a crise do sector era já um dado adquirido. Ironicamente, dir-se-ia que Portugal está em crise desde que o nosso Afonso I derrotou D. Teresa na escaramuça de São Mamede, em 1128, e o que a indústria e o mercado do livro no nosso País estão em crise desde que, em 8 de Agosto de 1489, se imprimiu em Chaves o «Tratado de Confisom», primeiro incunábulo português. As causas apontadas para a crise são numerosas. Umas crónicas, outras que vão surgindo. Há umas décadas, a persistência de uma larga percentagem de analfabetismo entre a população, o baixo poder de compra e a censura, eram três argumentos recorrentes (e todos eles reais). A televisão não se usava ainda como desculpa, pois a oferta desse meio era escassa. Actualmente, o analfabetismo é residual, o poder de compra não é famoso, mas os concertos de música rock enchem-se, para falar só num concorrente do livro. Não há censura, mas há televisão com múltiplos canais, computadores e Internet – as pessoas não ficam com tempo para ler, pois não podem perder os seus programas, os sites ou blogs favoritos. A pouco e pouco a leitura on line dos jornais vai pegando. O que significa que os jornais, ligados geralmente a grandes grupos, já estão a aprender a conviver com a mudança. Também há grandes grupos editoriais, grandes multinacionais da edição, e aí não se brinca às edições – cada projecto é minuciosamente analisado, antecedido de estudos de mercado. Nessas grandes empresa não se usa o velho sistema dos editores clássicos – «eu acho que»… – «Em marketing, não se acha, testa-se!», é uma dos axiomas do Professor Jorge Manuel Martins que lecciona Marketing do Livro na Faculdade de Letras de Lisboa, numa das tais pós-graduações de que falei. Por causa do «eu acho que», os armazéns estão cheios de livros que não se venderam e que, muito provavelmente, não se vão vender. Milhares de árvores inutilmente abatidas.

O empirismo dos editores e a falta de especialização das editoras médias e pequenas, a tentação generalista, a ausência de especialização em linhas editoriais específicas – direito, medicina, culinária, pedagogia, economia – a busca de nichos de mercado, que seria a grande solução para as pequenas e micro editoras; mas não, os pequenos editores, mesmo aqueles que publicam vinte ou trinta títulos por ano, persistem em abarcar todo o imenso leque do conhecimento – do romance à astrofísica. Eles divertem-se, mas arruínam-se. É um suicídio.

Porém, penso que mais do que uma crise no mercado do livro, creio que há a ausência de uma política do livro que induza os cidadãos a ler e a colocar o livro na sua lista de prioridades. Como é que isso se fará? Será coisa para o Ministério da Cultura resolver? Também, mas não só. Para falar só nos últimos cinquenta anos, nem o Estado Novo, nem os governos democráticos souberam criar uma política do livro. E o que será isso? Pitágoras disse. «Educai as crianças par que não seja necessário punir os homens», o que aplicado ao tema que estou a abordar seria «Educai as crianças para que não seja possível em adultas castigá-las com romances da Margarida Rebelo Pinto ou com uma televisão concebida para imbecis». Claro, dirão logo alguns, mas os programas escolares contemplam a literatura. Mas não é de programas escolares que estou a falar. É de educação integrada – uma das minhas utopias, claro. Voltemos à temática da crise do livro.

Resumindo: a verdade objectiva tem contornos estranhos: por um lado, os editores têm razão – há uma crise. Sempre houve. Porém, nunca se vendeu tanto livro como actualmente. Não me perguntem se a qualidade média das edições subiu ou baixou. Estou só a falar de quantidade. Crise do livro? – Sem dúvida! Também crise de mentalidades a afectar os pequenos e médios editores e impedindo-os de se adaptarem às novas realidades.

Sobretudo e sempre, crise de valores da sociedade. Para falar num facto recente, lembremo-nos Cristiano Ronaldo a ser saudado por multidões, com os canais de televisão a seguir todos os seus passos. E se toda aquela força e energia mediáticas fossem postas ao serviço da cultura? Cultura no sentido lato, não no sentido livresco. Embora a disseminação da cultura nesse sentido lato de aquisição de valores e de saberes, se traduzisse também na venda de mais livros

Comments

  1. Carla Romualdo says:

    O kindle tem reacendido a discussão sobre o futuro do livro e têm-se ouvido alguns comentários apocalípticos a esse respeito. Não aprecio a leitura nos e-books mas sei que o livro tal como o conhecemos corresponde a um período histórico que está a terminar. E se por algum motivo o livro tal como o conhecemos desaparecesse de súbito, rapidamente eu me habituaria ao formato electrónico. Imagino a indignação de um escriba da Mesopotâmia se lhe dissessem que as suas tabuinhas de argila seriam substituídas por um objecto composto por folhas de papel.

  2. Num texto que está para ser publicado, refiro precisamente a questão do kindle – também acho – e digo-o nessa crónica – que não devemos recusar liminarmente (como o faz o «nosso» Bradbury) os novos suportes.

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