Santarém, Capital do Gótico (VIII)

(primeira parte e explicação do «bodo aos pobres» aqui)

A MAIS FREMOSA DE QUANTAS VEJO / EN SANTAREN, E QUE MAIS DESEJO

Na Idade Média, Santarém foi um dos principais centros da poesia galaico-portuguesa e provençal. Um género literário que se desenvolveu e germinou muito por obra e graça do lirismo islâmico, que teve na cidade muitos dos seus representantes. A sua posição geográfica facilitava o intercâmbio de culturas e aumentou com a chegada dos cruzados franceses, no contexto das guerras da Reconquista.
As cantigas de amigo eram uma forma de «fazer falar» as mulheres. Dos seus sentimentos – alegrias, tristezas, amor e ciúme. Os trovadores escreviam-nas como se fossem as mulheres a fazê-lo.
Constituindo a variedade mais importante e original da nossa produção lírica da Idade Média, estas composições enquadram-se na poesia trovadoresca, mas incluem a particularidade de conferirem estatuto de enunciação à mulher, embora sejam sujeitos masculinos a compô-las.
«As «cantigas de amigo» de forma mais simples apresentam-nos, em geral, a mulher integrada no ambiente rural: na fonte ou na romaria, lugares de namoro, sob as flores do pinheiro ou de avelaneira; o rio, onde lava a roupa e os cabelos, ou se desnuda para tomar banho; na praia, onde aguarda a regresso das barcos. Inspira-se em geral uma desenvoltura inocente de ar livre e fala nelas uma voz impessoal que apela para os sentimentos mais básicos e constantes da emotividade humana. Uma curiosa fraternidade com os bichos, as flores e as ondas deixa adivinhar uma mentalidade animista, mal tocada pela influência cristã. Este grupo de cantigas pertence certamente a um fundo muito primitivo, que se esconde sob as águas do tempo. Noutras cantigas, é mais denso o ambiente doméstico. A moça canta enquanto torce o fio do linho; sucedem-se as discussões com a mãe, que recebe o namorado e autoriza o namoro. Neste segundo grupo, menos primitivo, o ambiente é mais caracterizadamente burguês. A uma terceira camada, enfim, pertencem as cantigas de estrutura rítmica mais complexa, embora baseadas no esquema paralelístico aqui encontramos uma verdadeira dialéctica dos sentimentos, uma gama que vai desde o ciúme à «coquetterie». Dispostas ordenadamente, os monólogos e diálogos em que se desenvolvem as situações comporiam um verdadeiro romance sentimental, antecipando Menina e Moça de Bernardim Ribeiro.» (António José Saraiva)
Um tipo peculiar de cantigas de amigo é o das paralelísticas, que aliam uma simplicidade de motivos e recursos semânticos ao elaborado arranjo da sua expressão. O esquema de repetitividade enriquece o sentido pela sugestão encantatória que cria, muitas vezes magoada, perplexa ou interrogativa. Típicas da poesia galaico-portuguesa, encontram-se também nas cantigas de amor e noutras variedades poéticas medievais, persistindo até muito tarde na literatura medieval.
«A cantiga de amigo tem espontaneidade, graça, ingenuidade, alegria franca. Em imitação da verdadeira poesia popular, o trovador usa do artifício de falar como menina namorada, do povo, que se dirige ao amigo e amado, que fala dele à própria mãe, às irmãs, às companheiras ou ao santo da sua devoção, ao pé da fonte, à beira-mar, no terreiro das bailias, a caminho da santuário, no pinheiral, sempre em íntimo contacto com a natureza. Muita vez nas festas primaveris de Maio. Sempre de refrão, essas cantigas femininas compõem-se de quadras, de tríadas ou de dísticos. Esta última espécie consta muita vez de duas redacções paralelas, distintas apenas pela rima, entoadas alternativamente por dois coros nas evoluções da dança.» (Carolina Michaëlis de Vasconcelos)
As cantigas de amor, por seu lado, um outro género poético da lírica galego-portuguesa, distinguem-se das cantigas de amigo principalmente por nela ser o trovador quem fala, dirigindo-se à sua senhora, que elogia e cujas qualidades exalta. Trata-se, aqui, da expressão do chamado amor cortês, em que o trovador se sujeita a uma relação de vassalagem perante a senhora amada. Deve dominar o seu amor, para não desagradar à dama, e guardar em segredo a identidade desta, que é, muitas vezes, ao contrário do que sucede nas cantigas de amigo, uma mulher casada. O trovador expressa o seu sofrimento amoroso por não poder atingir o objecto do seu amor. A expressão desse amor é feita de acordo com as convenções – espiritualizando o sentimento amoroso, considerando a mulher como uma deusa inacessível à qual só em sonhos se tem acesso.
É o caso da canção que se segue e que tem Santarém como pano de fundo, como cenário de um amor impossível:
«A mais fremosa de quantas vejo
en Santaren, e que mais desejo,
e en que sempre cuidando seio,
non ch’a direi, mais direi – ch’amigo:
Ay Sentirigo! Ay Sentirigo!
Al é Alfanx e al Seserigo.»
Nesta balada, o poeta revela que em Santarém se encontra a mais bela de quantas mulheres já viu. Suspira por ela, suspira por Santarém.
«Amigos, des que me parti
de mia senhor e a non vi,
nunca fui ledo, nem dormi,
nem me paguei de nulha ren.
Tod’este mall soffr e soffri
Des que vin de Santaren.»
Nesta balada, o troveiro exprime as saudades que sente desde que deixou Santarém e a sua senhora, que tanto amava. Nunca mais foi feliz desde então.
As cantigas de amor tiveram origem nas cortes senhoriais da Provença (sul de França), estendendo-se ao território galego-português e a outras regiões da Europa pela vinda de jograis provençais. Esta lírica provençal tornou-se depois modelo para os trovadores galego-portugueses, que adoptaram alguns dos seus processos técnicos, mantendo outros mais próximos dos que já conheciam e utilizavam nas cantigas de amigo (como a repetição de versos, de acordo com regras específicas).
«A nota característica da cantiga áulica de amor; em estrofe de mestria, sempre dedicada a uma senhora (=senhora solteira) da alta-roda, venerada ou cortejada pelo trovador; é a mesura. A moderação como ideal daqueles rudes tempos, bárbaros em muitos sentidos, levou os amantes a artificialmente evitarem todas as notas fortes. Restringiram-se a uma terminologia muito seleccionada. Sem serem frios, são por isso enervantes de convencionalismo e monotonia. Falhos de plasticidade, simbolismo, imagens, e mesmo de sensualismo, já deixam todavia transparecer o sentimentalismo fundamental da saudosa alma portuguesa que morre de amor. (Carolina Michaëlis de Vasconcelos)
Desde que chegaram da Provença, trazidas pelos jograis, tais músicas, de amigo e de amor, tornaram-se inseparáveis companhias de reis (dos quais D. Dinis é o melhor exemplo), nobres, clérigos e povo. «Foram dados os primeiros passos na rua, ao som das cantigas insertas nos primitivos cancioneiros, quando a dança era ainda plebeia, com D. Pedro I, o grande louco do amor, que usava despertar altas horas da noite quantos dormiam no paço (nas proximidades da igreja de Alcáçova), para percorrer as ruas da vila de Santarém, de mistura com a arraia-miúda que pasmava ao vê-lo dançar!» (Bertino C. Martins)
Os mais importantes poetas e trovadores medievais escolheram Santarém para sua morada e para sua musa inspiradora. Alguns eram de cá, outros por cá ficaram. Rui Fernandes, João Aires, João Soares Coelho, Requeixo, João Zorro, João Peres de Aboim ou Aires Pires Vuitorum foram apenas alguns deles.
Foi entre os reinados de D. Sancho I e de D. Dinis, principalmente, que este género literário, sempre associado à nobreza cortesã, atingiu o seu período de maior brilhantismo em Santarém. De resto, D. Dinis, o mais letrado dos monarcas portugueses da primeira dinastia, foi ele próprio autor de muitas canções de amor e de amigo. Quando D. Afonso IV foi coroado, em Janeiro de 1325, segréis e trovadores deliciaram a assistência com as suas cantigas, de amor, de escárni
o
e de maldizer.
Havia ainda as cantigas de escárnio e maldizer, um género musical que também fazia parte da poesia trovadoresca galaico-portuguesa. A sua temática incide sobre pessoas, mas também sobre alguns problemas da época — por exemplo a decadência da nobreza rural, através de meios como os trocadilhos, a ironia ou a sátira. A cantiga de escárnio distingue-se da cantiga de maldizer pelo facto de nunca referir a pessoa que está no centro da canção. Quanto à cantiga de maldizer, não esconde o nome do visado e chega a ser grosseira.
As primeiras cantigas foram interpretadas na rua. De popular, a dança vai passar a ser também aristocrática na corte da inglesa Filipa de Lencastre, mulher de D. João I. Mas nunca deixou de ser popular e nunca o povo deixou de cantar e dançar.
Por esta altura, já Santarém tinha escolas e mestres de música. A aprendizagem e a divulgação da música era mesmo incentivada por decisões reais, ao contrário do que viria a acontecer mais tarde. De 1442 é uma carta régia a isentar do pagamento das dízimas «aqueles que trouxessem harpas, aludes e guitarras.»

Comments

  1. dalby says:

    ExmºSr Dr Bokassa de Rio Tinto: Solicita-se a comparência de Vª Excª na repartição da GNR de Valbom, para responder a uma queixa-crime por violência psicológica dissimulada, contra o cidadão Dalby, dado este demonstrar algumas lesões cerebrais, devidas a uma nova ténica terrorista chamada « a gótica de santarém». Deverá fazer-se acompanhar deste aviso e do «corpo no seguro» pois quando cá chegar «o estilo gótico vamos nós dar-lhe».A não comparência implica que seja desterrado para o cu de judas do interior do distrito de Viseu juntamente com os pagamentos do quarto de 150 euros, da cama de aluguer 50 euros, comida 1000 euros, cervejas 1000000 milhao de euros e engraxador e sapateiro 999 euros.posto de valbomgnr

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