O esquecimento

adeportacao

A propósito disto: Faz hoje 70 anos. Hoje também faz 70 anos que o Reino Unido e a França declararam guerra à Alemanha Nazi. A efeméride é em si mesma, irrelevante. O que é relevante, é que o distanciamento temporal dos acontecimentos é neste momento tão grande, que a torna apenas mais uma data no calendário, sem que tenha grande expressão no dia-a-dia. É, apenas e só, mais uma notícia de rodapé a caminho do esquecimento. Este distanciamento torna-se o principal entrave à verdadeira relevância dum evento que foi provavelmente o mais importante da história da humanidade, quanto mais não fosse, por expor o que provavelmente serão os limites do próprio homem. De desumanidade e violência e de resistência e perseverança. Perante tudo isto, parece-me que, quer queiramos, quer não, estamos mesmo destinados a esquecer. Ou a querer esquecer. Consequência disso mesmo, é um pequeno livro de 200 páginas que encontrei no lixo. Alguém o deitou fora, provavelmente porque as imagens não são bonitas e apelativas (e o livro é composto essencialmente por fotos), porque este não foi um evento importante ou porque achou que estes eventos nunca terão acontecido. As razões pelas quais ele foi parar ao lixo eu não as conheço. Mas percebo perfeitamente a implicação e o significado do acto em si. De certa forma, o autor do prefácio, Louis Martin-Chauffier, muito melhor que eu, explica-o.

«A DEPORTAÇÃO, que tenho a subida honra de apresentar, não deve ser apenas, “para cada família de deportado ou de internado, o testemunho perene dos sacrifícios votados à causa da liberdade e da pátria”. É a um mais vasto acolhimento que se propõe corresponder. Monumento da recordação e do reconhecimento devidos àqueles que, pela sua forte afectividade, partilharam em espírito tantos sofrimentos quase inimagináveis, sofrendo ainda por cima crueldades que a mente dificilmente concebe, um tal livro é também destinado àqueles que se não lembram porque não souberam, para que eles venham a aprender e compreendam. Penso, antes de mais, nos jovens que, pela sua idade, ficaram aquém da memória, jovens esses a que importa dar a conhecer essa grande e terrível lição e os deveres que, no seu próprio interesse, ela lhes impõe.
Mas muitos outros há, e esses em idade de terem sido informados, que, por não terem sido atingidos pessoalmente ou através dos entes queridos, conheceram mal a verdade e pouco fizeram para a conhecer. Há muito tempo já que o esquecimento abafou os vagos e longínquos ecos que os seus ouvidos desatentos escutavam sem os fixar e apagou as imagens captadas por acaso no cinema ou nas revistas com um olhar distraído que logo delas se desviava.
Esconder a cabeça para não ver e envolver-se numa capa de silêncio é uma cobardia que, não raras vezes, a si própria se ignora, uma maneira prudente de deixar a consciência em sossego, dissimulando-lhe uma realidade por de mais terrível, perante a qual, uma vez alertada e informada, não poderia deixar de se comover e se interrogar. Como se o recusar-se a saber impedisse as coisas de terem sido o que foram! Como se essas coisas não tivessem, implícitas, consequências, e se o facto de elas terem sido o que foram não mudasse a sequência dos acontecimentos e, levando forçosamente à reflexão, não impusesse um sentimento de inquietação!
Não se pode viver indefinidamente na ignorância do mal que foi feito porque esse mal se prolonga; nem do bem que ele suscitou porque esse bem traz fortes razões de ter esperança. O que aqui se narra, o que aqui se mostra, passou-se há mais de vinte anos. Todos nós esperamos que os indiferentes de então ousem agora, talvez timidamente a princípio, tomar conhecimento do que aconteceu e que, pouco a pouco, impressionados por essa revelação, experimentem, embora tardiamente, remorsos pela sua prolongada e intencional ignorância e pela ilusão de terem acreditado que se podia impunemente varrer da história ainda bem viva aquilo que não passara de “um mau momento a atravessar”.»

Excerto do prefácio de “A Deportação”, Edições Europa-América, 1970

Comments

  1. dalby-o-calmo says:

    Daí o filme do Tarantino…! É bom lembrar pois há várias formas de opressão..umas antigas, outras formais mais subtis pós-modernas…..o Sócrates sabe do que falo! e a Ministra da Educação, monstros deste país!dalby

  2. isac says:

    é verdade, dalby. e eu hei-de falar delas.

  3. dalby-o-calmo says:

    acho bem,…

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