POEMAS ESTORICÔNTICOS

A mulher que amanha o peixe

Sempre que que a vejo

no supermercado onde vou

reconheço que não é por acaso.

Muito bonita a mulher que amanha o peixe

(não sei se amanha se amanhece!).

Rosto combatido

dorido

olhar sofrido e manso

não sei o que faz desta mulher um poema

se os olhos negros e fundos

se o desenho rasgado da face

se um gesto brusco da natureza

revoltada de cansaço.

Um vale profundo entre o cá e o lá

banca de peixe

mar imenso

mar morto

do outro lado um peixe vivo no céu

tocando o mar

estripando com mãos invisíveis

entre lágrimas e sangues

as entranhas da vida

nas elegâncias difíceis dos plásticos

cobertos de escamas.

Passos molhados

encharcados

pesados

cheirando a algas

ondas de tempestade

no lindo rosto marcadas

pela ânsia de voar.

Com tantos apetrechos de borracha

botas altas

luvas e avental

não sou capaz de adivinhar

o corpo que tem por baixo

nem quero que aconteça o tal.

A mulher é segredo

a mulher é sonho

sonho de si mesma

no olhar dos outros

sonho de ventre liso

crescente de imensidão

fonte de pão e de leite

eternidade e sorriso

dança de movimento

para além das formas

e da imaginação.

Trepadeira de vida e de morte

olhos que se abrem no céu

e repousam no mar

mãos de todas as direcções

ainda que vestidas de plástico

amanhando o peixe.

Não sei se é casada ou mãe

se é tudo ou nada

no reduto escasso do dia-a-dia

nem me interessa.

Bastam-me os olhos infinitos

a boca seca de beijos

a dor-desenho dos lábios

a doçura-criança que não cresceu

por falta de uso

tempo e espaço.

O corpo desta mulher está na face

oculta e sedenta

na ânsia fervente do impulso

na mais íntima agitação do mundo

e da dimensão

que pode caber numa banca de peixe.

Difícil acertar ideias e olhares

quando só olhares fazem ideias…

enfeita-se a beleza desta forma estranha

criando beleza no amanhar do peixe.

Cruel seria descobri-la a dançar

pesadamente etérea e volátil

nos salões de púrpura da mulher vulgar

entre rendas e espumas

que não são espuma do mar.

Como sempre

tenho de dizer até amanhã

sou forçado a serenar as ondas

a desnavegar meu barco.

Muito obrigado.

Não tem de quê.

Você é das mulheres mais lindas que já vi.

Muito amável

um exagero…

faça o senhor o resto das compras

e depois passe por cá.

Buscar o peixe…ou voltar a vê-la?

Sei lá!

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