O reyno do Chile


Napoleão no Chile? Engano meu? Velhice que engana o intelecto? Nem por isso. Napoleão Bonaparte andou por todos os sítios dentro e fora da Europa, em pessoa ou por meio de representantes. A França, por causa das guerras de Conquista de Napoleão, governava a Europa e decretou um bloqueio dos portos do Velho Continente para derrotar a Grã-bretanha e cercá-la pela fome. Até estar certo de ser obedecido, raptou o rei Bourbon, em Espanha, Carlos IV e o príncipe herdeiro, mais tarde Fernando VII. Nomeou o seu irmão José, Rei de Espanha entre 1808 e 1813, e entrou em Portugal para raptar os Bragança e dividir o país em três reinos. Mas os Bragança fugiram rapidamente para a sua colónia do Brasil, com D. João IV como rei e a corte toda, instalando a Capital do Império Português no Rio de Janeiro. Épocas e tempos em que todas a monarquias europeias tinham como escravos os membros do Novo Continente: trabalho sem pagamento, arrecadação de bens, vendidos mais tarde a outras colónias latinas ou metrópoles europeias a preço de ouro. Napoleão ditou um código em 1804 (1), que ainda nos governa, para criar igualdades entre governos centrais, cidadãos europeus nas colónias e crioulos ou filhos de europeus nascidos nos países dominados, esses apropriadores da terra nativa para seu proveito. Fernando de Bourbon derrubou no seu pais Calos IV que, no seu dourado exílio francês, passou a ser Fernando VII sem coroa, sem Estado nem colónias para mandar. As colónias, conforme o uso dos tempos, pertenciam às famílias reinantes.
No Reyno do Chile, essa parte da propriedade da família Bourbon, entre 1808 e 1813, sentiu-se sem ninguém para a governar. O representante da coroa teve de ouvir os intriguistas de sempre, todos esses bascos que tinham boas terras e fazendas, exportações de indústrias de curtumes, especialmente na região do Maule, cidade de Talca, o rim da aristocracia chilena durante esse anos – e ainda hoje: fazem-se chamar Talca, Paris e Londres. Cidade e região que explorou os proprietários da terra – o clã Picunche (que eu estudo), da etnia Mapuche, habitante do Chili de tempos sem memória e sem escrita. Para todos os proprietários com o nome com duas letras r no apelido (bascos), os Picunche eram os seus jornaleiros, denominados inquilinos que na língua da terra, o mapudungun, significa subjugados, como tenho definido no meu texto de 1998 (2). A escravidão tinha sido abolida no Chile nos anos 50 do Século XIX, eufemismo que continua até aos nossos dias: o inquilino trabalha as terras do proprietário, sem mais pagamento do que a entrega de alguma terra para sustento da família que a tem de trabalhar. Na época da conquista da terra do fim do mundo (3), os Mapuche, fossem Picunche, Huilliche, Mapocho ou Pehuenches, eram os livros dos invasores. Invasores desconhecedores do cultivo da batata, da beterraba, do milho e do trigo. Engrolavam os reais donos da terra, que dormiam em terra soterrada feita prisão, como tenho estudado nos arquivos dos jesuítas do Século XVII, que por bom azar encontrei escondidos ao pé das palmeiras da vila de Pencahue, Talca, Do que li, estudei e interpretei, com a minha equipa chilena, resultaram, pelo menos, cinco livros. Quem caia morto durante o trabalho, era de imediato enterrado numa finca destinada a cemitério, perto de Curepto, entre Talca e Linares, Vilas as duas. O terreno era denominado Huenchumali, a terra dos mortos, em mapudungum. Levei as crianças por mim analisadas para entender a história do país, escreveram textos, ainda comigo, em 1997, base de vários livros meus sobre crianças, especialmente o do ano 2000 (4).
O Governador em nome do rei da Espanha, o criollo (5) Dom Mateo de Toro e Zambrano, reparou um dia que não tinham Rei, convocou um Cabildo ou Concelho de Governo que o apoiava na gestão e declarou: Não há rei, não tenho direito a Governar. Dou-vos o bastão e o mando. Lá ficaram os membros do Cabildo a deliberar, escolheram o Conde como Governador, nesse dia de 18 de Setembro de 1810. Foi o dia da declaração da Independência. O Conde da Conquista faleceu em 1813, e um Consulado de três, foi criado para governar o país. Havia os que queriam Rei, os que queriam República e os do Governo por Cabildos. 100 anos durou o debate na base de Governos Presidenciais, eleitos por sufrágio aberto para os ricos. O povo não votava. O Consulado, presidido por José Miguel Carrera, mandou organizar um Congresso. Congresso bicameral, no qual o herói mais importante do Chile, Manuel Rodríguez Elroiza, foi membro. Um Manuel Rodríguez que, aquando da tentativa da Monarquia Ibérica retomar as sua colónias, não apenas ajudou a organizar o Exército Libertador, chefiado pelo recentemente aparecido agricultor, filho do Vice-rei de Espanha no Peru, Bernardo O’Higginns Riquelme, que com a colaboração da primeira República libertada, Argentina e o seu Ditador, o General José de San Martín, como participou na batalha travada contra as forças realistas, ganha por estas gentes do Novo Continente, que em 1818, ficaram livres dos espanhóis. Manuel Rodrigues organizou os montoneros ou resistência dentro do país que foram a base da liberdade, sempre pensada como realizada pelo exército chileno argentino.
Nesse ano de 1818, no sítio da derradeira batalha, Maipú, à entrada da Capital, a Nossa Senhora do Carmo foi jurada Padroeira do Chile. Até ao dia de hoje é dia livre e santo o dia da batalha de Maipú, 5 de Abril de 1818. O dia da Padroeira que em Castelhano é La Virgen Del Cármen, se comemora a 15 de Junho de cada ano, dia da sua primeira aparição no Monte Carmelo no Século VI, na Itália. Bernardo O´Higgings e José de San Martín juraram a La Virgen del Cármen, como a Padroeira dos chilenos. A seguir, O’Higgins foi declarado Director Supremo da Nação, governou até 1822, data do seu exílio pelo Congresso. Entregou as insígnias do mando oferecidas pelos Depautados, saiu nu de poder, enveredou para o seu cavalo, foi-se embora ao Peru e nunca mais voltou a pisar terras chilenas. Aos finais do Século XIX, em acto de reparação por parte dos poderes, o seu cadáver foi repatriado e preside, em Mausoléu, o Cemitério Geral, que ele fundara para os ateus como ele.
Chile foi Descoberto pelo Adiantado Mor Diego de Almagro em 1539. Nada interessante encontrou. O Extremenho e Capitão Pedro de Valdivia, a sua Companheira Inês de Suárez mais doze soldados e uma série de yanaconas ou nativos Quechua, persistiram e fundaram Santiago do Chile a 12 de Outubro de 1542.
O que comemoramos hoje é o dia de liberdade: esse primeiro 18 de Setembro de 1810: 199 anos de liberdade, uma República sempre em formação, como o eram também a Europa do mesmo Século e a fundação, por Karl Marx, da União dos trabalhadores em Londres, no ano de 1861. Mundos distantes, mas sempre o mesmo ensejo: sermos livres e sabermos optar.
Como é o Chile de hoje. Não pela Padroeira, mas sim pelos esforços livres dos seus habitantes na sua capacidade de optar.

1) O Código Napoleónico (originalmente chamado de Code Civil des Français, ou código civil dos franceses) foi o código civil francês outorgado por Napoleão I e que entrou em vigor em 21 de Março de 1804. O Código Napoleónico propriamente dito aborda somente questões de direito civil, como o registo civil ou a propriedade; outros códigos foram posteriormente publicados abordando direito penal, direito processual penal e direito comercial. O Código Napoleónico também não aborda como as leis e normas deviam ser elaboradas, matéria para uma Constituição.
Este Código, propositadamente acessível a um público mais amplo, foi um passo importante para estabelecer o domínio da lei. Antes, a lei era a vontade do Soberano – eis o motivo para designar o mona
rc
a – e o proprietário das terras retiradas aos nativos pelo chamado direito de Conquista, baseado no Direito Romano. O Código Napoleónico baseou-se em leis francesas anteriores e também no Direito Romano e seguiu o Código Justiniano (Corpus Juris Civilis) dividindo o direito civil em:
1. a pessoa
2. a propriedade
3. a aquisição da propriedade
A intenção por detrás do Código Napoleónico era a reforma do sistema legal francês de acordo com os princípios da Revolução Francesa. Antes do Código, a França não tinha um único corpo de leis, que dependiam de costumes locais, criando-se frequentemente isenções e privilégios dados por reis ou senhores feudais. Durante a Revolução os vestígios do feudalismo foram abolidos e os vários sistemas legais deram lugar a um único código. Entretanto, devido às agitações revolucionárias a situação não caminhou até à era napoleónica. Fonte: a obra de Ferdinand Braudel, o livro Tratado Elementar do Direito Romano, de Èugene Petit, 1ª edição, 1989 e as Institutas e Digesta do Código Civil do Imperador Justiniano, de 535 da nossa era, textos comigo em edições do Século XIX. O de Justiniano foi a base, como diz Petit, do liberalismo do Código de Napoleão, ditado por ele ao seu grupo de juristas entre 1801-1804. Motivo que o levou a expandir o liberalismo pelos quatro cantos do mundo.

2) Iturra, Raúl, 1998: Pedagogia do oprimido. As minhas memórias de Paulo Freire, em Educação, Sociedade e Culturas Nº 10, Outubro, Afrontamento, Porto, pp 83-108. Pode-se ler em: http://www.fpce.up.pt/ciie/revistaesc/ESC10/10-3-iturra.pdf .

3) Palavra Aimara que assim define o Chile ou Chili, enquanto para os Quechua do Peru, Bolívia e Equador , Chili é o país do frio. Fonte: as minhas pesquisas no Chile a partir de 1994, época em que, desde a Grã-bretanha e Portugal, voltei para estudar o meu país de origem.

4) Iturra, Raúl, 2000: O saber sexual das crianças. Desejo-te, porque te amo, Afrontamento, Porto, 150 pp.

5) Criollo no Chile desses tempos, eram os filhos de Ibéricos nascidos no Chile. Desde 1823 passaram todos a ser chilenos, por Decreto assinado pelo agora Director Supremo do Chile, o Libertador Bernardo O’Higgins, por Decreto que declara a Independência do Chile e cria a cidadania chilena para todos os que tenham nascidos dentro do limites da nova República, Decreto que passa a ser lei na Primeira Constituição de 1822. Relatado e analisado no meu livro Como era quando não era o que sou. O crescimento das crianças, Profedições, Porto, 175 pp.

Comments

  1. Muito interessante e útil. Temos a eurocêntrica tendência para não conhecer, ou mesmo ignorar, o que se passa fora do nosso continente. O pouco que sabemos da história dos países latino-americanos é o que os colonizadores europeus contam à sua maneira. Útil e esclarecedor, repito. Uma pequena gralha – foi João VI, não o IV; que se refugiou no Rio. Obrigado pela lição de História. Que venham mais!

  2. Raul Iturra says:

    Queria advertir aos leitores do meu texto Reino de Chile, quem seja que o posteu, engabou-se. Não era gralha o tírulo, era Castelhano do Século XVI, donde o título real é:O Reyno do Chile. Se os título não for mudado, o texto perde o seu poder de convencer e dizer!

  3. Luis Moreira says:

    Já está, meu caro.

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