Poemas com história: Ar condicionado


António de Oliveira Salazar! Estávamos obcecados pelo ódio a um ditador que, ainda por cima, medíocre e tacanho, não parecia ser digno dessa obsessão. Nuns versos que a polícia apreendeu em minha casa, designava-o o por o cão. Ao contrário do que eu pensava o «poema», salvo erro um soneto, não me custou espancamentos nem acréscimo de tortura. Apenas um inspector, um torcionário famoso pela sua ferocidade, andou à minha volta a declamar os versos com ar grandiloquente e comentando para o estagiário que me guardava: – «Qual Camões, qual carapuça – isto é que é poesia!». Embora olhando para a janela e simulando não estar a ouvir, fui sempre esperando que ele chamasse o piquete que estava no corredor e me desabasse uma tormenta de cassetetes em cima. Mas não, leu, declamou e depois rasgou o papel. Sinal de que não queria utilizar aquilo como prova. O estagiário, um ex-seminarista, quando o inspector saiu só me disse: «o senhor inspector estava muito irritado, que eu bem o conheço – e acrescentou, abanando a cabeça reprovadoramente «- Também o senhor, chamar cão ao senhor Professor. Déspota, ainda vá, mas cão?» Mal saí do presídio, repus o stock e escrevi estes versos menos directos, um pouco mais subtis. Não voltei a ser preso e em 1970, quando publiquei A Poesia deve ser Feita Por Todos, já Salazar tinha sido substituído por Caetano, incluí este poema. O livro foi apreendido, mas não terá sido só por causa do Ar condicionado que aqui vos deixo:

Ódio, mesquinhez, mediocridade,
num rosto de branca estearina,
em mãos de apodrecida crueldade,
o futuro imediato se destina
moldado em velhos fósseis do passado.
Alquimia do medo, chantagem do terror,
ácido queimando as raízes do amor,
eis o segredo
em redomas de silêncio conservado.

O gesto humano se consome e se corrói
no cadinho da fome e da ignorância.
Suprema elegância entretanto faz
do teatro lusitano a triste fama
cantada na soberba do cartaz
– nos seus desertos corredores circula
A última palavra em ar condicionado.

Comments

  1. Meu caro, não sei se é dado à imaginação, mas importar-se-ia de reescrever o mesmo tema, sobre os tempos presentes, e depois informar-nos sobre o desfecho?… 🙂

  2. Penso que sou dado à imaginação, mas os cães dos tempos presentes, medíocres e rafeirosos, não são dignos de ódio e muito menos de poemas (mesmo que panfletários). Faria jeito a ironia de um Bocage. Mas a tanto não me chega o engenho e a arte.

  3. That’s a senibsle answer to a challenging question

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