A máquina do tempo: a vitória de Sócrates e os perigos de um chavismo em Portugal

Sócrates e o PS ganharam. Uma vitória do embuste? Sem dúvida. Mas se Manuela Ferreira Leite e o PSD ganhassem, além de mudarmos de rostos na montra da governação, o que mais ganharíamos? Na minha opinião, nada. E, podendo ser acusado novamente de paternalismo por não concordar com o resultado de eleições que deixam nos últimos lugares os dois partidos mais de esquerda, penso que os portugueses gostam mais de mentiras agradáveis do que de verdades duras. Em todo o caso, parece-me um fenómeno curioso este que, abrangendo largos sectores de opinião, se traduz no ódio a José Sócrates. É que, o ódio, tal como o amor, é um sentimento profundo que devemos dedicar a quem o merece. Sei que não podemos controlar, por mero exercício da vontade ou por imperativo racional, os impulsos do coração, às vezes dedicamos estes sentimentos – o amor principalmente – a quem os não merece. Mas não deixemos deslizar o tema para a telenovela. Na minha opinião, Sócrates não merece ser odiado, é demasiado medíocre para tal. Muito menos amado, naturalmente. Mas já aqui neste blogue, um aventador o comparou ao Hugo Chávez. Caramba, que elogioso para Sócrates!

Mas será que com esta vitória de Sócrates, corremos o risco de ter aqui um regime populista, caudilhista?

Com todos as demagogias e autoritarismos, Chávez, mais do que Sócrates, é um ser humano mais autêntico, digno de ser odiado e amado. Quanto ao chavismo e aos seus excessos, devemos lembrar que ele é presidente de um país sul-americano, onde um regime autoritário não significa o mesmo que significaria na Europa. – o desnível social entre pobres e ricos é de tal forma escandaloso que só uma mão de ferro pode tentar manter a justiça. A democracia representativa é um regime em que as «liberdades» sufocam por vezes a Liberdade e os «direitos» submergem o Direito. Sobretudo, uma democracia desenhada para a Europa, em circunstâncias históricas, sociais e culturais muito específicas (e mesmo assim funciona aqui no continente da forma que sabemos). Não é um modelo aplicável em todas as latitudes e em todas as situações.
A democracia é um sistema justo, igualitário e que promove a inteira liberdade de expressão. É um ideal límpido pelo qual muitos cidadãos morreram. Mas não é uma verdade incontestável nem um sistema que possa ser aplicado em todas as circunstâncias. Numa sociedade de estrutura tribal, por exemplo, a democracia não faz sequer sentido. E teremos nós, democratas europeus ou americanos, o direito de erradicar, por exemplo, o tribalismo para impor a democracia? Tanto como o escuteiro que, para praticar a boa acção diária, obrigou a velhinha a atravessar a estrada contra sua vontade. Penso que este desejo de impor o que achamos bom para nós aos outros, tem sido, desde há muitos séculos, o erro recorrente de europeus e de norte-americanos.

Veja-se o caso do Iraque. Uma aliança internacional foi lá impor a democracia e derrubar um tirano – resultado: num país onde um déspota, a par da tirania, impunha ordem e alguma paz social, existe desde a «libertação» uma guerra em que morreram e continuam a morrer milhares de pessoas, um país em ruínas, um caos social e político. Não competiria aos iraquianos derrubar o tirano e implantar a democracia, se fosse essa a sua vontade? A chamada «Europa civilizada», sempre defendeu que o que castelhanos e portugueses fizeram durante os Descobrimentos e a Colonização foi errado e mesmo criminoso – impor a fé cristã pela espada (e foi!). O mesmo não se poderá dizer daquilo que europeus e norte-americanos estão a fazer pelo mundo fora, impondo a democracia como modelo único da governação dos povos?
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Não estou a defender Chávez, estou apenas a tentar compreender o fenómeno dos regimes autoritários da América Latina. Como se explica que nas principais cidades de uma Venezuela cheia de recursos naturais, existam chabolas miseráveis a pouca distância de condomínios luxuosos? Explica-se pela exploração desenfreada, pela incontrolada acumulação de riqueza por parte de pequenos sectores da população. Explica-se porque há uma fera à solta chamada capitalismo. Quem reclama por mais liberdade? Os habitantes das chabolas? Não. Intelectuais e terra-tenentes, a gente dos bairros ricos, os fazendeiros. Os mesmos que em épocas recentes apoiaram caudilhismos de sinal oposto e que agora se converteram à democracia. Nestas condições, o que será preferível, o chavismo, com todas as suas prepotências, ou a «democracia» colombiana, com ligações do presidente Álvaro Uribe aos cartéis de narcotráfico ou a «democracia» argentina e a fortuna que o corrupto casal presidencial Kirchner acumulou?
Um ex-ministro de Salazar disse-me uma vez uma coisa muito certa – por vezes os povos têm de escolher entre o pão e a liberdade. Ele estava a defender a política de Salazar, mas o princípio vale para outras situações. Aos que na Venezuela nada têm, para que lhes serve a liberdade de expressão? Que lhes importa que Chávez impeça as televisões de transmitir este ou aquele programa ou mesmo que feche uma estação de televisão? Para quem tem fome, o que é uma série de desenhos animados, por mais de culto que seja para quem come todos os dias, comparada com um bom pão de quilo, com meia dúzia de ovos ou com um pacote de leite? Na verdade, os povos da América Latina são postos frequentemente entre o dilema de escolher entre o pão e a liberdade. Quando lhes aparece um caudilho ou um demagogo, recebem-no em delírio. Foi assim com o justicialismo de Perón e com o marxismo de Fidel. É assim com a demagogia populista de Chávez.
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Voltando à vaca fria, ou seja à nossa política actual – Sócrates não tem perfil de caudilho, é mais um «político profissional», com tudo o que de negativo isso significa – mente as vezes que forem preciso, promete e só cumpre se puder (o que significa que nunca cumpre). Podemos ir-lhe lançando em rosto a sua condição de «socialista». Sem quaisquer resultados, é verdade, porque o descaramento de Sócrates é inesgotável e será capaz de nos responder com o ar mais sério do mundo – «Então, camaradas, querem medidas mais socialistas do que as minhas?» O título do livro de contos que Irene Lisboa publicou em 1955, «Uma mão cheia de nada Outra de coisa nenhuma», continua a caracterizar com rigor aquilo que estes candidatos do «bloco central», chamem-se eles José ou Manuela, nos trazem. Zero.
Em todo o caso, com todos os seus problemas, Portugal não se situa na América Latina, a classe média, no sentido lato, é maioritária – o que tem dado a vitória ao «bloco central» – o chavismo aqui estaria condenado ao fracasso, pois 20% da população a viver abaixo do limiar da pobreza não constitui uma base social de apoio suficiente para implementar um regime caudilhista. E os 80% que, uns melhor outros pior, comem todos os dias, estão-se marimbando para o facto de dois milhões de pessoas sobreviverem sabe-se lá como – e vão votando ao sabor de interesses corporativos, da crença em promessas, da simpatia que este ou aquele candidato emanam. E vão vendo o futebol, bebendo umas bejecas, mandando umas bocas, votando em gente que, de uma maneira geral, não presta… Temer que com Sócrates venha o chavismo é o mesmo que temer que com Manuela regressasse o salazarismo – são temores, tremendismos sem grande sentido. Na União Europeia seria inconcebível um caudilho, seria politicamente incorrecto. Temos problemas que bastem mesmo sem lhes acrescentarmos ficções catastrofistas. Era tempo de acordarmos para a nossa realidade e de começarmos a construir alternativas que excluam a possibilidade de sermos governados por políticos mentirosos e que servem de manto a mil e uma corrupção, (desde que politicamente correctas) deixando dois milhões de concidadãos nossos a viver na sarjeta.

Isto é uma utopia, já se vê, porque verdadeiramente realistas são os qua
se
37 % que votaram em Sócrates e os 29% que votaram em Manuela. Porém, em democracia, temos direito às nossas utopias. Valha-nos isso. Se nos tirassem essa possibilidade, os hospícios para doentes mentais estariam superlotados.

Comments

  1. Luis Moreira says:

    Carlos, estamos na UE o que torna aventuras e tentações mais dificeis, mas já agora lê o meu texto “Provocação Hondurenha” das 16 horas. Não sei se o filme é o mesmo.

  2. M.Rodrigues says:

    -“A democracia é um sistema justo, igualitário e que promove a inteira liberdade de expressão.”:Em que país vive o meu amigo? Não neste Portugal concerteza, ou não sabe que vivemos a ditadura do politicamente correcto, da visão esquerdista do homem bom-que só é mau por culpa da sociedade? Veja-se o caso da Manuela Moura Guedes, o caso do cartaz do PNR no em que o seu líder é perseguido pela unidade de combate ao crime especialmente violento da PJ, para só falar dos mais recentes, é isto um pais democrático onde se podem ouvir opiniões que não agradem aos senhores instalados? Não me parece.

  3. M.Rodrigues says:

    -“A democracia é um sistema justo, igualitário e que promove a inteira liberdade de expressão.”:Em que país vive o meu amigo? Não neste Portugal concerteza, ou não sabe que vivemos a ditadura do politicamente correcto, da visão esquerdista do homem bom-que só é mau por culpa da sociedade? Veja-se o caso da Manuela Moura Guedes, o caso do cartaz do PNR no largo do Marquês em que o seu líder é perseguido pela unidade de combate ao crime especialmente violento da PJ, para só falar dos mais recentes, é isto um país democrático onde se podem ouvir opiniões que não agradem aos senhores instalados? Não me parece.

  4. Refiro-me, obviamente, ao ideal democrático (tal como o definiu, por exemplo, o Rousseau) e não ao tipo de «demoracia» que temos. Se leu o meu texto com atenção, verá que este simulacro de democracia não é do meu agrado. O que não significa que o confunda com o chavismo. Os exemplos que cita (Manuela Moura Guedes e PNR), não são os mais felizes.

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