A máquina do tempo: a «Leva da Morte»

ferragial

Há quem, mais de 90 anos decorridos, queira descrever o consulado sidonista como um oásis de ordem no meio do caos da I República. Esquecem-se, entre outros actos de despotismo, os que assim descrevem o período em que Sidónio Pais presidiu aos destinos do País do sinistro episódio da «Leva da Morte», ocorrido faz hoje 91 anos, portanto em 16 de Outubro de 1918.

No ano anterior tinham acontecido muitas coisas – logo em Janeiro partira para França a primeira brigada do Corpo Expedicionário Português (Comandado pelo general Gomes da Costa). Portugal entrava na Grande Guerra. Os contingentes continuariam a seguir para a frente de batalha. Em 25 de Abril formou-se o terceiro governo de Afonso Costa. Em Maio noticiavam-se as primeiras «aparições» de Fátima, logo aproveitadas pelas forças conservadoras.

O pano de fundo de tudo isto, eram os motins, as greves, mas esse caos social, económico e político serviu de trampolim ao major e professor Sidónio Pais que, mobilizando algumas unidades militares e, sobretudo, os cadetes da Escola de Guerra, e com algum apoio popular, desencadeou em 5 de Dezembro uma revolta. Mais uma. Afonso Costa foi preso, o ministério demitiu-se, o presidente Bernardino Machado partiu para o exílio. Instaurou-se uma ditadura militar, apoiada pelo Partido Unionista. O Congresso foi dissolvido, destituído o presidente da República, a constituição alterada. Instalou-se um regime presidencialista – aquilo a que se veio a chamar o sidonismo. A Sidónio, muitos chamavam o «Presidente-Rei». Era a «República Nova».

Os decretos eram publicados a uma velocidade estonteante. A máquina administrativa, a lei da imprensa, o ensino, tudo ia sendo reformulado. As relações com o Vaticano foram restabelecidas e restituído ao clero muitos dos privilégios que a República lhe retirara. As sucessivas revoltas contra a ditadura sidonista iam sendo dominadas. Em Janeiro de 1918, foi neutralizado um levantamento de marinheiros da Armada. Em 28 de Abril, realizaram-se eleições presidenciais com Sidónio como único candidato, foi eleito. Em França, em La Lys, as tropas portuguesas sofreram uma pesada derrota o que reforçou a germanofobia do presidente e dos seus apaniguados. A direita reforçava-se. Em Julho surgia a «Cruzada Nun´Álvares» formada por monárquicos e sidonistas católicos com o objectivo de unir a direita anti-republicana.

Tudo isto ocorria sem que os problemas fulcrais do País se resolvessem – continuava a miséria, a carestia da vida, o racionamento de bens essenciais… O descontentamento, mesmo dos que tinham saudado o aparecimento de Sidónio, reavivava-se. Recomeçavam as greves, os motins, os levantamentos populares. O benefício da dúvida terminara. Sidónio apenas resolvera problemas da hierarquia da Igreja, de terra-tenentes e industriais. O povo não figurava nos seus planos. Gente ligada ao Partido Democrático, agitava-se. As prisões enchiam-se de opositores ao «presidente-rei». A «lei-da-rolha» estendia-se a todos os domínios. Tudo estava tão mal como antes, só que agora nem sequer se podia protestar. E chegamos ao 16 de Outubro de 1918.

Na manhã de 12 de Outubro eclodiu em Coimbra uma revolução constitucionalista, saindo para a rua o Regimento 35. O comandante da Divisão sediada na cidade foi preso pelos revoltosos e o alferes Sidónio Pais, o filho do presidente, perseguido pela cidade. Em Lisboa e no Porto, o movimento não encontrou eco, a revolta foi jugulada Face à rebelião que alastrava por todo o País, o governo decretou o estado de sítio. As prisões encheram-se de presos políticos, gente do Partido Republicano Português na sua generalidade.
Cerca das 3 da tarde, não cabendo mais presos nos calabouços do Governo Civil de Lisboa, as autoridades decidem transferir uma parte deles para os fortes do Campo Entricheirado – São Julião da Barra, Alto do Duque e Caxias. O comboio especial que os iria transportar, estava previsto sair às 18 horas do Cais do Sodré, sendo depois a partida adiada para as 21 horas. Ao cair da tarde, 153 detidos são concentrados no pátio central do Governo Civil e, rodeados por 253 guardas saem do edifício. Há um pormenor bizarro. O cortejo é aberto por uma formação de corneteiros e tambores.

Entre os presos, destaca-se a figura fisicamente enorme de Francisco Correia Herédia, um sexagenário forte e combativo. Fora deputado e fizera, antes do Regicídio, parte do grupo da dissidência Progressista, liderado por José Maria de Alpoim. Estava filiado no PRP de Afonso Costa e voltara ao Parlamento, agora como deputado republicano. Deixara de usar o título de visconde e usava apenas o seu nome civil. Como disse, os presos marchavam enquadrados por guardas armados. Apontando as armas aos curiosos, gritavam:
– Fechem as janelas! Afastem-se das ruas!

Quando o cortejo, vindo da Rua Serpa Pinto, atravessando o Largo da Biblioteca e chegando a cabeça da coluna à Rua Vítor Córdon soou um tiro. Estabeleceu-se o pânico e desencadeou-se um forte tiroteio com os guardas a disparar quase à toa em todas as direcções. Quando a calma e o silêncio se restabeleceram a rua estava juncada de mortos e de feridos, alguns agonizantes. No rescaldo, apuraram-se sete mortos, seis presos e um guarda, sessenta feridos, sendo trinta e um preso e vinte e nove guardas. Entre os mortos, na valeta junto à Rua Vítor Córdon, estava o visconde de Ribeira Brava, degolado pelo que parece ter sido um golpe de baioneta.

No dia seguinte, o Governo emitiu um comunicado em que se dizia que tudo começara quando Francisco Herédia disparou sobre os guardas da escolta, tentando evadir-se. Nesta disparatada versão pormenorizava-se que a pistola entrara na prisão dentro de um tacho de açorda! – a pistola nunca foi encontrada. Dizia-se também que dos bordéis da Calçada do Ferragial tinham sido disparados tiros contra a polícia. Foi preso um garoto de 12 anos, acusado de cumplicidade no ataque.

No entanto, a versão em que toda a gente acreditou era a mais óbvia: o massacre fora preparado pela polícia sidonista. O insólito grupo de tambores e cornetas abrindo o cortejo foi interpretado como uma forma de referenciar a marcha da coluna aos olhos de quem do exterior iria intervir.

No sábado, 14 de Dezembro de 1918, quando o ditador ia partir para uma viagem ao Norte, foi abatido a tiro na Estação do Rossio por um atirador que, ao que parece, não fazia parte de qualquer grupo político. Um tal José Júlio da Costa que, apesar de todos os esforços da polícia, do avultado número de prisões efectuado, nunca se provou estar organizado fosse em que partido fosse.

A chamada República Nova morrera com Sidónio. Nunca se diga que os doze meses da ditadura sidonista foram um hiato na violência e no caos da I República. A «Leva da Morte», episódio ocorrido faz hoje 91 anos, foi apenas um dos muitos crimes cometidos pelas autoridades nesse período.

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