A máquina do tempo: o Repórter X

 

 

 

Chamava-se Reinaldo Ferreira e nasceu em Lisboa em 10 de Agosto de 1897. Foi repórter, novelista, dramaturgo e até realizador de cinema. Começou a escrever nos jornais com apenas doze anos. A partir dos vinte, foi considerado o maior repórter português. Entre 1926 e 1935, ano da sua morte (em 4 de Outubro), viveu no Porto. «Entrevistou» a famosa espia Mata-Hari e o «pai» de Sherlock Holmes, Arthur Conan Doyle, sem nunca os ter contactado. Enviou para o seu jornal reportagens extremamente vivas do que estava a acontecer na Rússia, na disputa pelo poder entre Estaline e Trotsky, mas há quem diga que as escreveu sem lá ter ido. Previu como Lisboa e Porto seriam no ano 2000 – anteviu que seriam cidades fascinantes nesse ano mítico e, naquela altura, tão distante!  – uma figura fascinante, Reinaldo Ferreira – o Repórter X, como ficou conhecido. A nossa máquina do tempo vai visitá-lo.

Em  Agosto de 1914, na redacção de «A Capital», foi admitido como aprendiz um rapazinho com 17 anos. Garibaldi Falcão, um experimentado jornalista, fora encarregado de o guiar no começo da profissão, mas estava preocupado com as peças que iam chegando sobre a Grande Guerra que deflagrara havia pouco, no dia 28 de Julho. Distraidamente, vendo o jovem inactivo,  perguntou-lhe: «Ouça lá, o menino já fez fogos?» Pensando que o estavam a tomar por um pirómano, Reinaldo Ferreira respondeu indignadamente: «Não senhor!». Desfeito o equívoco, após uma gargalhada geral dos redactores, lá foi fazer a sua primeira reportagem, a cobertura de um incêndio, um fogo posto, na Rua D. Estefânia.

Como só lhe davam coisas deste tipo – incêndios, furtos, casos insignificantes… – começou ele a inventar as reportagens sensacionais. Em 1917, horrorizou os leitores com um crime na Rua Saraiva de Carvalho, que metia um cadáver, criminosos encapuçados, muitos pormenores misteriosos e macabros, bem como um tipo sinistro, apenas referenciado como «o homem dos olhos tortos» – a história começou a sair em «O Século» sob a forma de cartas assinadas por um tal Gil Góis. O caso começou a atingir tais proporções, tal impacto entre os leitores que o jornal achou melhor revelar que tudo não passava de uma ficção. Mesmo assim, a história prosseguiu e o interesse dos leitores manteve-se até ao desfecho, à semelhança do que acontecera cinquenta anos antes com o folhetim de Eça e de Ramalho – «O Mistério da Estrada de Sintra». Data deste ano de 1917 a sua, tão célebre quanto fictícia, entrevista a Mata Hari.

Depois, em Março de 1918, em «A Manhã», Reinaldo Ferreira publicou «um inquérito à mendicidade». Fez-se fotografar andrajoso e mal barbeado e toda a gente acreditou que ele tinha andado a pedir esmola, mergulhado no submundo. Enquanto lhe tiravam a fotografia, os passantes foram deixando cair moedas. Ganhou ao todo 47 centavos.

Ainda em 1918, publicou a reportagem de um assassínio de uma estrangeira numa pensão de Lisboa. O criminoso teria sido o marido. Ajudado pelo grande desenhador Stuart de Carvalhais, na pensão em causa, virou um quarto do avesso, espalhando sangue de galinha por toda a parte e fotografando depois a «cena do crime». Já falámos aqui no assassínio de Sidónio Pais quando, na estação do Rossio, tomava o comboio para uma viagem oficial ao Porto. Pois, Reinaldo Ferreira (que, segundo parece, não estava lá) fez para o »Diário de Notícias» a reportagem mais lida sobre o magnicídio – nessa reportagem, antes de expirar, o presidente-rei teria dito: «Morro bem! Salvem a Pátria!». Frase heróica que entrou em livros e em crónicas, mas que Sidónio nunca proferiu, pois caiu fulminantemente morto abatido pelos tiros do tresloucado José Júlio da Costa.

Em 1919 foi para Paris, onde trabalhou no «Le Soir», no «Matin» e dirigiu a Agência Americana, cujos serviços chefiou em Madrid, Barcelona e Bruxelas, onde vivia em 1920. Note-se que tinha apenas 23 anos. Na capital belga ficou até 1922, colaborando no jornal «Neptune». Em 1923 nasceu o Repórter X. De regresso de Paris, estava em Barcelona quando, em 13 de Setembro, Miguel Primo de Rivera, capitão-general da Catalunha  acabava de tomar o poder. Reinaldo Ferreira não resistiu à tentação de enviar para o jornal uma crónica atacando o ditador e denunciando as suas prepotências. Segundo uma das versões, por prudência, não assinou – pôs apenas «repórter» e a seguir um rabisco ilegível. O tipógrafo ao compor o texto, tomou o rabisco por um x. Repórter X. Reinaldo Ferreira logo ficou enamorado por aquele pseudónimo nascido de uma casualidade.

Explorando a popularidade que o nome rapidamente assumiu e capitalizando o seu enorme carisma, criou o «Jornal do Repórter X». Seguiram-se o «Repórter X» e o simplesmente «X». Multiplicando-se, correndo de um sítio para outro, iniciou-se em Espanha na cinematografia, realizando uma série de filmes policiais e de comédias. Acrescente-se que também escreveu para o teatro – peças que foram representadas no »Ginásio» e no «S.Luiz». Uma delas, «1808», foi interpretada pela grande Palmira Bastos.

Em 1925, trabalhando no «ABC» foi enviado à União Soviética para fazer a cobertura dos incidentes e da luta pelo poder entre Estaline e Trotsky após a morte de Lenine. Encalhando em Paris (onde teria caído nas garras da cocaína), foi mandando telegramas para a redacção dizendo que não estava a conseguir obter o visto. Mas, enquanto explorava o bas-fonds parisiense, foi mandando trabalhos – por exemplo, terá inventado uma entrevista com Conan Doyle.

Depois, esgotadas as desculpas, chegou finalmente a Moscovo. Dali começou a enviar reportagens e entrevistas – desde o porteiro do Kremlin ao embalsamador de Lenine. Há uma suposição, plausível, mas talvez infundada, segundo parece, de que Reinaldo Ferreira continuou em Paris e foi lendo as crónicas diárias de Henri Bérau, correspondente de «Le Journal» em Moscovo. Porém, há quem defenda que ele esteve, de facto, em Moscovo e que as entrevistas são genuínas. Hoje, é impossível saber a verdade. Em todo o caso e seja como for, as suas crónicas eram formidáveis.

Ainda em 1925, fez admiráveis reportagens sobre o caso da extraordinária burla cometida por Alves dos Reis, no caso do Angola e Metrópole (que merecerá aqui também um futuro texto). Em Março de 1926, deu-se o assassínio da corista Maria Alves, estrangulada num táxi e arremessada para o passeio. Escrevendo para o «ABC» e baseando-se em crime semelhantes, foi elaborando deduções que conduziram a um criminoso para o qual a polícia não apontava – Augusto Gomes, o amante da actriz. Veio a provar-se que foi ele, de facto, o autor do crime. O assassino ficou com a convicção de que Reinaldo o seguira e assistira a tudo, de tal modo a sua ficção se ajustava ao que aconteceu. O que teria sido impossível, pois as crónicas eram enviadas de Haia onde o jornalista estava à época do crime a cobrir o julgamento de Karel Marang, relacionado com o caso Alves dos Reis.

A sua imaginação era ilimitada. Às vezes abusava dela, como quando tentou convencer os leitores de que no subsolo de Lisboa existia uma outra cidade mi
st
eriosa, construída a seguir ao terramoto de 1755, onde desde então, habitando numerosa galerias, como toupeiras, as gerações se sucediam. Como peça jornalística era inverosímil, mas como novela era potencialmente brilhante. Recentemente, ao ler um romance de Douglas Preston, sobre uma comunidade de «toupeiras» habitando sob Manhattan, em galerias desactivadas do metro de Nova Iorque, lembrei-me das «reportagens» de Reinaldo Ferreira.

Reinaldo Ferreira constituiu na sua época um paradigma de repórter. Hoje, com o endeusamento do chamado jornalismo de investigação ou «investigativo», os seus métodos seriam talvez condenados. É que ele praticou um jornalismo de inspiração ou «criativo». Morreu com apenas 38 anos, devastado por uma vida intensa em que o consumo de cocaína, morfina, tabaco, álcool, tiveram amplo protagonismo. Casou duas vezes , tendo dois filhos do primeiro casamento e um do segundo. Um deles, Reinaldo Ferreira como o pai (1922-1959) foi um notável poeta. Ganhou fortunas,  morreu quase na miséria e, apesar da sua celebridade em vida, foi rapidamente esquecido. Foi o facto de um companheiro nosso no Aventar, me ter perguntado quem era o Repórter X que me levou a escrever este texto que talvez chame a atenção de alguns leitores para tão curiosa personagem.

Por iniciativa de Natália Correia, em 1974 a Arcádia publicou a sua novela «O Táxi nº.9297». Como disse Ferreira de Castro «Foi preciso que uma grande poetisa tivesse voz orientante numa casa editora, para que se ressuscitasse um grande jornalista português, decerto o mais estranho de todos…»

Comments

  1. isac says:

    Personagem louca esta. Eu imagino este, à mesa, a tomar um cafézinho com o Camilo Pessanha. Deveria parecer uma porta para outra realidade! Não sei porquê, mas um lembra-me sempre o outro…

  2. Não se devem ter encontrado. Em todo o caso, tiveram em comum os seus grandes talentos, a tuberculose e a toxicodependência – o Camilo relativamente ao ópio e o Reinaldo com a morfina e a cocaína.

  3. Existirá alguém como ele? Para que precisamos nós de inventar um 007, quando o RF daria para uma ininterrupta série a não perder? Feita por ingleses, claro ;)Quanto ao filho, o Reinaldo ferreira de Lourenço Marques, há que dizer que a rua com o seu nome, por lá continua. Não quiseram substitui-lo por um Idi Amin ou um Kim jong-Il, por exemplo. Antes assim…

  4. isac says:

    também não acredito que se tivessem encontrado, porque se tivesse acontecido de certeza que era um evento para a posteridade. ou talvez não, já que são dois génios esquecidos.

  5. Fizeram bem os moçambicanos que, aliás, reivindicam a nacionalidade do Reinaldo Ferreira. Grande poeta. Já soube de cor um poema dele que se chamava,salvo erro, «A que morreu em Madrid». Um dia, hei-de dedicar um texto ao Reinaldo Ferreira, filho.

  6. isac says:

    essa é uma grande falha portuguesa. se o reporter X fosse inglês ou americano era uma fonte inesgotável de inspiração para outros e era uma celebridade mundial. nós, portugueses, não sei muito bem porquê, temos uma tendência natural para menosprezar os nossos. e deixá-los cair no anonimato e esquecimento. Vá-se lá perceber.

  7. Em Portugal, para já, é crime estar vivo. Os génios querem-se mortos. Veja-se aqui, no pequeno universo do nosso blog, o que vai por aí de raiva ao Saramago que, para além de todos os dislates e incontinência verbal, é um grande escritor. Tem de morrer para ser exaltado e, depois, esquecido…

  8. A que morreu às portas de Madrid, com uma praga na boca e a espingarda na mão, teve a sorte que quis, teve o fim que escolheu. Nunca,passiva e aterrada,ela rezou. E antes de flor,foi,como tantas,pomo. Ninguém a virgindade lhe roubou depois de um saque – antes a deu a quem lha desejou, na lama dum reduto, sem náuseas,mas sem cio, sob a manta comum, a pretexto do frio. Não quis na retaguarda aligeirar entre champanhe,aos generais senis, as horas de lazer. Não quis,activa e boa,tricotar agasalhos pueris,no sossego dum lar. Não sonhou minorar, num heroísmo branco, de bicho de hospital, a aflição dos aflitos. Uma noite,às portas de Madrid, com uma praga na boca, e a espingarda na mão, à hora tal,atacou e morreu. Teve a arte que quis. Teve o fim que escolheu.

  9. Ora aí está, Adão, o poema que, adolescente reviralhista , eu sabia de cor. Obrigado por mo teres recordado, bem hajas!

  10. E eu que tive a minha primeira casa, minha, na Rua Reinaldo Ferreira a Alvalade?

  11. Nada contra o escritor Saramago, Carlos.

  12. Pois, Luís, desde o princípio que eu só estou a defender o escritor Saramago e o seu direito a criticar a Bíblia e tudo o que quiser criticar. O homem Saramago não interessa.

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