Pelo final dos anos 60 os jornais traziam muitas fotografias semelhantes à que mostro: camponeses vietnamitas, guerrilheiros ou não, colhidos pela guerra, jazendo mortos sobre os arrozais. Lembro-me de uma imagem de uma criança com o rosto queimado pelo napalme, moribunda e cega. O texto explicava que os meninos pediam às mães que lhes rasgassem as pálpebras para as poderem ver uma última vez.
Foi uma fotografia dessas que, apanhando-me a beber o café matinal, me chocou profundamente e desencadeou o poema que, afinal, procura demonstrar a futilidade das palavras, inclusivamente dos poemas e das canções de protesto. Ainda que bem intencionadas, nada são perante a cruel enormidade das realidades que denunciam. Pensei também nessa manhã de há quarenta anos em como as nossas vidas, mesmo a de pessoas perseguidas pela polícia política, eram comezinhas quando comparadas com a daquelas gentes sobre as quais se abatiam as garras assassinas da guerra. Nunca me considerei um poeta, sempre disse que a poesia era para mim uma arma de arremesso contra a ditadura e contra o imperialismo. Não um fim, mas um meio. De acordo com esse princípio, o poema, publicado na colectânea «A Poesia Deve Ser Feita Por Todos», diz:
Enquanto
Enquanto apunhalada a paisagem arde,
um homem dorme num arrozal de pranto
deixando nas estrelas o olhar parado.
Eu canto,
canto com revolta e sem ela, canto
nesta janela de espanto e fel
onde debruçado me revolto e canto
cravando a raiva na brancura do papel.
Enquanto tudo arde à minha volta,
há um homem que apodrece no arrozal
e um fogo criminoso que percorre a aldeia.
Um menino morre, mas não chora
enquanto a morte vem
(as pálpebras queimadas
pelo napalme assassino
são duas mãos de fogo e pus
abatidas sobre os olhos do menino).
Não pode ver a luz e à mãe implora
que lhe rasgue à faca as pálpebras
de pus. Não para ver a luz.
mas para poder ver a mãe
ainda uma vez antes de morrer.
E eu canto, eu canto enquanto
as flores são assassinadas.
os frutos da vida são colhidos
por garras criminosas,
as escolas são bombardeadas
o gado, as pastagens, as aldeias
destruídos impiedosamente.
As crianças agonizam, as flores fenecem
e o sangue circula normalmente
nas minhas veias, enquanto
ardem as colheitas e os homens apodrecem
acometidos pela fúria de mão odiosa.
Enquanto canto, vou ao café ou leio,
Em meu redor a paisagem arde
e eu neste litoral a ocidente da coragem,
o sangue bem guardado no meu corpo,
capitalizado em napalme e morte.
Afinal,
cada qual tem a sorte e o esquife que merece
e se o coração não é maior do que o peito
qualquer leito nos serve para morrer:
uma cama, uma câmara de gás,
um túmulo de lama, tanto faz.
O homem que apodrece lentamente
trazia o Sol dentro de si a palpitar,
por isso investiu no futuro a sua carne,
transformou-a em semente
que a terra não devora em vão,
porque embora a paisagem arda,
tudo pareça morto e acabado,
gado, a floresta, a pastagem,
tudo apodrecido ou incendiado,
um homem com os dedos na espingarda
funde-se com a terra lentamente.
Um dia, uma flor ou uma cidade,
uma árvore e talvez mesmo a liberdade,
nascerão nessa terra que comeu
o camponês no arrozal tombado.
a foto mais extraordinária, é a daquela menina queimada pelo napalm, a correr à deriva num caminho rural. A miúda cresceu e já ouvi o seu testemunho e a do jornalista que a salvou. O homem pode ser a pior besta!
Seria melhor. O homem às vezes faz coisas, pequeninas, mas que trazem esperança. Que pode ser uma besta já todos sabemos.
Belo poema Carlos, daqueles que nos torcem como um farrapo, e que me mostra que os profissionais e poderosos belicistas deste planeta não passam de estrume que nem os arrozais onde jazem estes pobres humilhados e ofendidos aceitariam.
Obrigado, Luís e Adão, pelos vossos comentários. Esta poesia é muito datada, só podia ter sido escrita quando foi, com toda aquela raiva que, o assistir impotentes ao que se passava no Vietname, nos tomava.