No Centenário (2): Relvas aparadas

 

Da leitura em diagonal das Memórias Políticas de José Relvas, decidimos retirar mais alguns valiosos contributos para o melhor conhecimento daquilo que foi o regime saído do golpe de 1910, assim como das questíunculas, ódios e irresponsabilidade política e moral dos seus principais dirigentes.

 

Sendo Relvas geralmente apontado pelos panegiristas do regime da Demagogia, como uma inatacável personalidade eivada de todo o tipo de qualidades políticas, morais e intelectuais, os seus escritos deverão ser encarados como honestos testemunhos da situação imposta pela violência a um país coagido pela coacção física e propagandista.

 

Já na fase pós-sidonista, Relvas parece esquecer-se da feroz luta contra a "ditadura" administrativa de Franco (1906-08) e assim, declara em 1919 …"como pode o Governo com o actual Parlamento que já não representa a vontade nacional, visto que o País aceitou o meu Ministério, não só sem resistências, mas até com aplauso? Foi por isso que eu fiz na entrevista um apelo ao Parlamento para nobremente votar o princípio da dissolução e uma nova lei eleitoral, elaborada com o consenso dos partidos, deixando entrever que se a vida do executivo ainda fosse possível com as actuais Cortes iríamos até ao momento em que novas eleições constituíssem uma necessidade inevitável para a formação dos dois novos e grandes partidos, base duma tranquilidade, que não conhecemos há muito tempo".

Este parágrafo remete-nos de imediato à famosa entrevista dada pelo rei D. Carlos aoTemps, em que os pressupostos para a normalização da vida pública, tinham como ponto central a formação de dois partidos constitucionais verdadeiramente alternativos – o governo "à inglesa" – e à elaboração de um novo sistema eleitoral mais equilibrado. Mais de uma década decorrida e num cenário de indescritível desordem pública, miséria económica e clara, embora camuflada derrota militar na I Guerra Mundial, Relvas parece pretender ressuscitar o plano de João Franco, num momento em que a dissolução do regime já se tornara inevitável.

 

Continuando, o autor escreve que …"acentua-se a campanha da dissolução em termos da maior violência. Hoje, na Câmara, quando se começava a discutir o projecto a que me referi na carta de ontem, o Francisco Fernandes afirmou que tal projecto, recordando o decreto de 31 de Janeiro, de João Franco, o excedia todavia nas autorizações arbitrárias que concedia ao poder executivo. Devo dizer-lhe que não é muito grande a correcção do dr. Fernandes e o seu espírito de transigência, não hesitando em aprovar o projecto desde que ele contivesse a restrição das autorizações concedidas apenas ao actual Governo". Por outras palavras, é a "ditadura!

 

A guerrilha entre os caciques republicanos, vai enrubescendo de fulgor e assim, …"o Cunha Leal – comediante-tragediante sabendo que o Parlamento já não existia, resignou o seu mandato de deputado perante o comício. E acrescentou que, se o Governo não decretasse a dissolução, convocava desde já o povo para dissolver o Governo!" Foi esta a gente de alegados elevados princípios de rectidão moral que quis governar o país. Continuando, vai escrevendo que …"esse farsante subiu as escadas do Ministério do Interior, acompanhado de populares, que a breve trecho entravam violentamente no meu gabinete, armados com pistolas e espingardas, invectivando-me e não me tendo morto, graças à oportuna e enérgica intervenção de Tito de Morais (…) entretanto, nas Ruas do Ouro e dos Capelistas continuava o tiroteio com a polícia, obrigada a defender-se dentro já da esquadra do banco de Portugal. Havia mortos e feridos. O primeiro polícia foi morto à porta do Ministério (…) durante a noite a Polícia, que se manifestara hostil ao Governo, teve de render-se, não sem ter manifestado num pátio da Parreirinha os seus afectos em vivas entusiásticos à Monarquia"…

De Machado Santos, a grande figura do 5 de Outubro da Rotunda, , dizia que …"é um sincero em tudo o que faz. Há porém entre estes dois homens diferenças fundamentais. É honestíssimo. Mas é de uma mediocridade intelectual assustadora, o que o conduz, fora da Rotunda, a todos os desaires e a todos os desastres. Está sendo cúmplice inconsciente do Cunha Leal, que não tem escrúpulos de nenhuma espécie, que é superiormente inteligente, e ilimitadamente ambicioso".

 

Na sua 24ª carta, desabafa que …"quando mataram o Sidónio – vilíssimo assassinato -, e quando o Teófilo Duarte passeava por Lisboa as suas loucas tropelias, dizia-lhe eu que tinha a impressão de presidir a um manicómio. Hoje tenho a impressão de habitar um covil de feras!" Estas palavras são absolutamente idênticas às de D. Manuel II logo após os acontecimentos de 1908-10, mas Relvas parece esquecer-se do constante recurso à violência física promovida pelos chefes do p.r.p. nos derradeiros anos da Monarquia Constitucional.

 

De Guerra Junqueiro, fazendo juz ao preconceito da época e aludindo ao desvario pela acumulação de riqueza que parecia obcecar o vate da república, dizia que …"ofundo irresistível da sua origem semita procura conciliar, com a mais alta e nobre visão da Pátria, os interesses da sua ambição. O que o conduz por vezes a situações lamentáveis".

 

Voltando à dissolução do parlamento, Relvas escreve: "Outro acto de firmeza do governo que parece estar esquecido, e que todavia não podia ser de maior transcendência, foi a dissolução do parlamento. Por não estar incluída na Constituição a faculdade de dissolver o Parlamento, atravessámos épocas políticas agitadíssimas, e viemos a dar a uma revolução." Curiosa auto-condescendência do escriba-primeiro ministro, parecendo oportunamente esquecer-se da tremenda campanha de imprensa levantada pelos republicanos durante o governo de João Franco. Assim, para Relvas a ilegalidade justifica-se desde que seja a "sua ilegalidade".

 

Não nos alongando mais no demolidor contributo do antigo primeiro ministro da 1ª república, finalizamos, como epitáfio de uma situação insolúvel, com um pequeno parágrafo:

"Entretanto, todas as pessoas que passam pelo meu gabinete estão assombradas com o espectáculo duma política tão mesquinha. Realmente, este gabinete é agora um posto de observação, e até de estudo, para psicólogos. Nesta luta de pigmeus, a fingirem de grandes homens, é fácil distinguir os motivos que os fazem agir (…) é a indicação que leva ao Terreiro do Paço outro Governo, que não pode ser, senão em outros moldes e com outras pessoas, uma reprodução do que vai desaparecer sumido nessa terrível voragem de desorientação e desprestígio em que se somem, nos últimos anos, em Portugal, umas atrás das outras, todas as situações ministeriais?"

 

* Na imagem, manifestação popular de apoio a D. Manuel II, diante do Paço das Necessidades (1910).

 

 

Comments

  1. Esta fase da nossa história é muito mal conhecida. estes textos são de uma grande importância. Ainda ontem em jantar (após o desastre sportinguista) fiz uma experiência. Havia um médico, um oficial superior do exercito, um engenheiro e dois economistas e só a muito custo lhes arranquei dois nomes influentes naquele período.

  2. Meu caro Nuno, já lhe tenho dito como gosto dos seus textos. No entanto, transparece neles a ideia de que tudo era luminoso, belo e puro até 1910 e, naquele «terrível» dia 5 de Outubro, a luz, a beleza e a pureza que iluminavam a Pátria se extinguiram. Reconheço que muita canalhice se albergou sob a bandeira verde-rubra . Como muitos republicanos, não me eximo de a denunciar. Porém, posições como a sua, levam às vezes a que os opositores radicalizem também as opiniões. Na verdade, todos os males e todas as chagas que eclodiram após a mudança do regime, existiam já sob a Monarquia. Canalhas, corruptos, já existiam e, claro, não seria a mudança de regime que iriam acabar com essas espécies. Com esta ressalva, parabéns pelo texto.

  3. Canalhas e corruptos já existiam nos tempos do Imhotep. O que me irrita é a propaganda oficial, aliás prodigamente dispensada durante a 2ª república, com o seu nacionalismo extemporâneo, culto ao Venerando, etc, etc. Já agora, deixe-me que lhe diga que o pré-1910 é o que de mais parecido Portugal teve com o que hoje vivemos.  É a verdade e sinceramente, sempre prefiro “isto” ao sr. Costa e sr. Salazar. Apesar de tudo!

  4. maria monteiro says:

    este ano decidi que a prenda de Natal a dar aos mais novos é o livro”A MINHA PRIMEIRA REPÚBLICA” de José Jorge Letria   passo a transcrever uma pequena parte (…) ” Não sabiam o seu nome, mas alguém o pronunciou alto e bom som, para que ninguém o esquecesse naquele momento de euforia popular, com um mar de gente a inundar a praça, que parecia muito pequena para os acolher a todos. E entre eles havia já um bom número de monárquicos prontos a virar as casacas e a oferecerem-se para servir o novo poder, como sempre acontece em ocasiões como aquela. – É o José Relvas que está a falar. Ele é um dos chefes do movimento revolucionário, e estão com ele os outros chefes. Viva a República! Viva a República!” (…)  

  5. Nuno, este tempo estamos a vivê-lo (literalmente) ao pormenor, ao segundo – apercebemo-nos da mínima corrupção, da mais pequena canalhice. O tempo do Salazar, vivi-o numa grande porção, e sei que era abjecto. Os tempos de Hintze Ribeiro, João Franco e, depois, do Afonso Costa, conhecemo-los em segunda mão, geralmente por relatos nem sempre isentos. É melhor não estabelecermos comparações. Sinceramente, tenho-o dito algumas vezes a amigos monárquicos, surpreende-me que acreditem que o regresso à Monarquia resolveria os nossos muitos problemas. Eu, que abomino o regime monárquico por uma questão de princípio, de crença na Democracia, não sou tão radical e penso que o regresso à Monarquia, sendo simbolicamente um passo atrás na cadeia evolucionária, não conseguiria tornar as coisas piores do que estão. Mas, como a Maria Monteiro diz, Viva a República! Sempre!

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