E no fim do dia descansou… – Breve biografia de Salgueiro Maia (II)

continuação de aqui) A coluna é composta por 240 homens, um esquadrão de reconhecimento com dez viaturas blindadas e um outro esquadrão de atiradores com doze viaturas de transporte de pessoal, duas ambulâncias e um jipe. Às três horas e vinte minutos, dá-se a partida de Santarém. A viagem decorre sem qualquer problema e às seis da manhã a revolução já está na praça do Comércio. O aeroporto, a RTP, a Rádio Marconi, a Emissora Nacional e o Rádio Clube Português já tinham sido tomados sem resistência. «Aqui, posto de comando do Movimento das Forças Armadas» – ouve-se aos microfones do RCP pouco depois das quatro horas. Um dos trunfos do êxito da revolução foi a rapidez com que Salgueiro Maia percorreu a distância entre Santarém e Lisboa. Duas horas apenas, sem ser interceptado nem ser obrigado a dar nenhum tiro. Uma lição que aprendera com o fracasso do 16 de Março. A cidade de Lisboa começa a acordar e a população sai de casa para a labuta do dia-a-dia. Com calma e tranquilidade, Salgueiro Maia dirige-se a quem demonstra a vontade de ir trabalhar. «Ó minha senhora, hoje não se trabalha. Amanhã, talvez… mas hoje não! Nem hoje, nem nos dias 25 de Abril que vierem, porque esta data passará a ser feriado!» O episódio mais complexo daquela manhã ocorre cerca das nove horas. Quatro carros de combate, uma companhia do Regimento de Infantaria n.º 1 e alguns pelotões da polícia militar, todos fiéis ao regime, aparecem dos Cais do Sodré, progredindo pela rua Ribeira das Naus e rua do Arsenal. O brigadeiro responsável exige que Maia se desloque para trás das suas tropas, mas, não sendo obedecido, dá ordens para disparar. Um a um, os seus homens desobedecem e passam para a facção contrária. A facção da liberdade. Na objectiva de Alfredo Cunha, ficou imortalizado o momento em que Salgueiro Maia se encontrava sozinho, no meio da rua, com os canhões à sua frente em posição de disparar, e apenas com um lenço branco na mão. O apoio popular à causa revolucionária agora já é evidente. A caminho do quartel do Carmo, onde Marcello Caetano está refugiado, Salgueiro Maia segue numa espécie de «cortejo» triunfal. A cumplicidade do povo, nesses momentos de enorme tensão, foi então decisiva.  

Com o megafone na mão, por volta das três da tarde, Salgueiro Maia pede que o quartel se renda no espaço de dez minutos, período após o qual dará ordem de disparar. O prazo esgota-se sem haver qualquer resposta e a primeira rajada de tiros não se faz esperar. A ansiedade atinge níveis indescritíveis. «Militares, populares e jornalistas são por uma vez testemunhas e protagonistas da história. Há já milhares de cravos vermelhos. Canta-se a marcha do MFA e Grândola Vila Morena. Entoam-se palavras de ordem. Mas do meio da turba uma voz de comando destaca-se e o passo decidido de Salgueiro Maia cadencia o ritmo dos acontecimentos.» (António de Sousa Duarte)

No momento em que se preparava para dar ordem de disparar maciçamente sobre o quartel, chega uma carta de Spínola dirigida a Marcello Caetano. Às perguntas dos mensageiros – quem manda aqui e quem é o oficial mais graduado – Salgueiro Maia responde da mesma forma. «Mandamos todos! Somos todos capitães!» Às cinco da tarde, porque a situação não se desenvolve, o capitão, temerário, entra no quartel para falar directamente com o presidente do Conselho. Na breve conversa com Marcello, Salgueiro Maia mostra toda a enormidade do seu carácter, das suas intenções e dos objectivos que o levaram a sair de Santarém para acabar «com o Estado a que chegámos». Assegura a protecção do chefe do Governo, diz que programas políticos não são consigo e coloca todos os membros do MFA no mesmo plano. Salgueiro Maia, primeiro, e Francisco Sousa Tavares, depois, apelam à calma e tranquilidade dos presentes. Spínola já chegou e Marcello Caetano acaba de lhe entregar o poder. Ao capitão, ainda lhe estava reservada uma última missão: conduzir Caetano ao comando do MFA, na Pontinha. A revolução estava consumada, o nosso herói podia tranquilamente voltar para a sua Escola Prática de Cavalaria, para a sua Santarém, como se nada tivesse acontecido. «Era um militar de bravura inigualável, mas também extremamente sensato e um homem de coração. Maia era um chefe nato e dele emanava a força serena dos homens habituados a dominarem-se e, sendo preciso, a dominar os outros. Foi assim que Salgueiro Maia, com os seus homens, dos quais a maioria sem qualquer experiência e praticamente sem instrução de tiro, venceu na revolução e virou a página da história de Portugal. Dominou calmamente, no Terreiro do Paço, o tenente-coronel Ferrand de Almeida, dominou o brigadeiro que se lhe quis opor e, pela calma fixa do seu olhar, dominou um a um os homens que receberam ordem para disparar sobre ele. No Carmo dominou tudo e todos: dominou a guarda, dominou o Governo, dominou os ministros que choravam, dominou a multidão e dominou o ódio colectivo dos que gritavam vingança. E dominou o tempo e a vitória que veio ter com ele, obediente e fascinada.» (Francisco Sousa Tavares) Nos anos seguintes, recusou ser comandante da Escola Prática de Cavalaria, membro do Conselho de Revolução, adido militar numa embaixada, governador civil de Santarém e membro da Casa Militar da Presidência da República. Tudo recusou, porque a única ambição que tinha era de continuar em Santarém com o posto que ocupava. Aos que constantemente lhe lembravam os actos heróicos que protagonizara, respondia apenas: «O que lá vai, lá vai.» Entre 1977 e 1984, foi completamente ostracizado. Como que punido por ter feito a revolução. Aconteceu-lhe a ele como a muitos outros dos militares de Abril. «Até já poderemos ser acusados e presos por implicação no 25 de Abril» – chegou a confessar a João Paulo Guerra. Desalentado, tentou um último reconhecimento da hierarquia militar. Em 1988, já doente, solicita uma irrisória pensão por «serviços excepcionais ou relevantes» prestados ao país. Foi-lhe recusada a pensão, ao mesmo tempo que era atribuída a dois antigos inspectores da PIDE. Morreu em 3 de Abril de 1992, depois de quatro anos de sofrimento, nos quais se incluíram quatro operações cirúrgicas. Ao funeral, realizado em Castelo de Vide ao som da «Grândola», como era seu desejo, ocorreram as mais altas instâncias, passadas e presentes, da governação. Confirmando o que alguém disse nesse exacto momento: «Mesmo depois de morrer, o Maia continua a servir sem se servir.»

Por tudo o que fez ao longo de 47 anos de vida, Fernando José Salgueiro Maia é uma das maiores figuras da história de Portugal no século XX, à qual não foi dada, ainda, a importância devida. Um dos poucos heróis portugueses do século, capaz de fazer uma revolução com 240 homens mal treinados e um conjunto de obsoleto material militar. É provavelmente a única personalidade portuguesa do século XX que mereceria a distinção, sem a ter tido até ao momento, de descansar eternamente no Panteão Nacional. Por quê? Porque Salgueiro Maia deu-nos tudo. Quem ainda não o percebeu, não terá apreendido ainda o significado e o valor da palavra liberdade.

 

Aquele que na hora da vitória respe
it
ou o vencido

Aquele que deu tudo e não pediu a paga

Aquele que na hora da ganância perdeu o apetite

Aquele que amou os outros e por isso não colaborou com a sua ignorância ou vício

Aquele que foi Fiel à palavra dada e à ideia tida

Como antes dele mas também por ele Pessoa disse.

(Sophia de Mello Breyner)

Comments

  1. rosarinho says:

    Boa tarde,Ontem não consegui aceder ao blog. Dava erro.Bom trabalho este de perpetuar a memória. Nunca é de mais…

  2. Luis Moreira says:

    Boa tarde Rosarinho, aconteceu-me o mesmo, dava erro.O aventar não pagou a avença…

  3. Atenção, muita atenção caríssimo Ricardo,Tenho uma admiração absoluta por Salgueiro Maia, mas, ao mesmo tempo, tenho a sensação que se fala em Salgueiro Maia para não se falar em Otelo. Ora a minha questão é sempre a mesma:Quem tem medo de Otelo?E porquê?

  4. Luis Moreira says:

    Caro Carlos, o Salgueiro Maia é o capitão de Abril genuíno, até pelo facto de nunca ter aceite o que que seja e ter falecido muito cedo.Isso deu-lhe uma áurea de herói que ele efectivamente, é!Quanto ao Otelo foi um homem generoso que fez muitas asneiras apesar do conselho de muitos amigos.Aqui por casa é por isso que somos fãs do Salgueiro Maia.E para falar no Otelo teríamos que balancear com outros que fizeram o mesmo mas na ponta contrária.Mas a mioria esteve sempre com a democracia!

  5. Não posso concordar, Luís Moreira, nem um pouco. A aura de Otelo é muito superior e a todos os níveis. Porque foi o estratego, porque desenhou as operações, e diria mesmo que isso é o aspecto menor. O aspecto maior reside na sua exclusão recente dos louvores e da vida pública, só porque não se rendeu a um tipo de democracia que, como se sabe, estamos todos a pagar caro a sua edificação definitiva. Já se sabe, a democracia que temos não era a que Otelo (e quem diz Otelo diz o outro nosso génio absoluto, o José Afonso!!!) desejou. A derrota faz de Otelo uma figura trágica muito superior, infelizmente. Porque a tragédia de Otelo é a nossa. É esta democracia dos Varas, Coelhos, Vitorinos e Sócrates. Otelo lutou para que isto não sucedesse assim, e eu também lutaria (se não fosse tão novo em 75). Otelo é o mito, Maia a realidade, e eu aqui tenho de preferir o mito porque não gosto desta realidade (de que Maia também culpa nenhuma tem, claro).Otelo é o mito, mas não é só o mito, ele também lutou de muitas maneiras por outra realidade. Nunca assumiu as FP 25, creio eu, mas se as assumisse (e eu nada sei ao certo do seu envolvimento nessa aventura) em nada sairia beliscado desse gesto (na minha opinião). Opiniões, meu caro, opiniões diferentes temos.Um abraço.CV

  6. Ricardo Santos Pinto says:

    Em parte tens razão, Carlos. Para mim, foram os dois igualmente grandes quando se pesa tudo. Até a pensão que Cavaco lhe recusou quando estava ao mesmo tem que a dava a um antigo PIDE. E o certo é que Otelo é incómodo: pelas posições que sempre defendeu, pelas candidaturas à Presidência da República, pelas FP’s 25. Só que de Otelo nada tenho escrito, e este de Salgueiro Maia já tem 3 anos. Vai haver novidades sobre Otelo em breve aqui no Aventar.Como dizes, é esta democracia dos Varas, Coelhos, Vitorinos e Sócrates. O que me dá total razão quando pergunto, noutro post, o que faz um Capitão de Abril no PS.Abraços.

  7. […] (biografia de Salgueiro Maia aqui e aqui). […]

  8. Pisca says:

    Será sempre bom recordar uma verdade incontestávelNenhum, mas mesmo nenhum dos Capitães de Abril, progrediu na sua carreira, para além do curso normal da mesma, e em muitos casos foram prejudicados e muito por esse mesmo envolvimento.Foi criada na altura a figura de “Graduado em…..” a que se seguia a publicação de “Desgraduado” quando cessavam funçõesHaja quem me aponte um caso se souberMesmo a promoção do Eanes foi feita à sua revelia e quando sendo PR se encontrava fora do País

  9. São hoje coronéis, como seriam se não tivessem feito o 25 de Abril. São militares de carreira com o curso superior da Academia Militar!É por isto que é preciso tornar a falar no 25 de Abril, esta geração já nada sabe sobre a madrugada libertadora e os seus heroíes.

    • Maquiavel says:

      Se näo houvesse o 25 de Abril seriam bem mais que coronéis. Aliás, basta ver os poucos capitäes de 1974 que näo foram “implicados no 25 de Abril” para perceber. Esses já säo generais. Até conheço um que acabou de ser promovido a general e que só entrou na Academia Militar em 1975.

      Dos outros que já eram acima de capitäes em 1974 já nem se fala.

  10. Otelo, é um sonhador, que no momento próprio percebeu que ía lançar o país numa deriva ditatorial e assim, evitou uma guerra civil.Isso e muitas outras coisas lhe devemos, mas os capitães só podiam impor uma democracia parlamentar, um Estado de Direito e uma economia de mercado, ao fim e ao cabo um país ocidental .Tudo o resto são desejos, pese embora os varas, os Sócrates e os coelhos…

  11. ribas says:

    O que sei do Salgueiro Maia é que numa operação militar na Guiné-Bissau, foi o de ter destruido uma companhia.
    Quem o disse – Marcelino da Mata, o meu herói

    • Luís Moreira says:

      Por acaso, meu caro, essa de ter destruído uma companhia é atribuída a diversos capitães de Abril. Sabe ribas, é como ser agnóstico, não se pode provar…mas o boato faz o caminho!

  12. Se o seu herói é o assassino Marcelino da Mata, estamos conversados Ribas.

  13. ola:D
    Gostei da tua biografia…..
    looooooooooooooooooooooooool ;P

  14. Irene da Mata says:

    Sr Joao tem alguma prova de que o meu pai é um assassino? Se sim por favor divulgue-as caso contrario consenta… ele tanto é um “murderer” como o seu pai um “herói”!!! Faça-me o favor sim?!

  15. carlos says:

    totos lol

  16. SRjoao, pergunte aos portugueses presos no SENEGAL,E LIBERTADOS PELO MARCELINO O QUE ACHAM DELE.Isso de falar de ouvido, nunca foi uma boa estrategia.E como sou coerente com oque digo assino o meu nome vitor martins

  17. Beatriz Baptista says:

    Olá! Vim dizer que só entrei no site porque precisava de um resumo MUITO BREVE para um trabalho da escola. Até que me deparo com um texto ainda maior do que o da wikipédia. Bem, como eu não vim aqui para criticar, vinha só pedir se podia colocar um resumo mais pequeno e que eu pudesse explicar sem cansar os outros só de olhar para o texto. (lol) Obrigada pela atenção!

  18. Manuel Augusto Pereira de Almeida says:

    Para mim, Salgueiro Maia foi o maior herói, do 25 de abril. Merecia ainda ser vivo.

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