A máquina do tempo: da nave dos loucos aos sinos de Basileia

A propósito da recente ida do Ricardo Santos Pinto a Basileia, que conheço, embora mal, lembrei-me de dois livros relacionados com aquela cidade suíça, separados por quase quatro séculos e meio. Mas o que é isso para uma máquina do tempo? Lembrei-me desses livros e, por associação de ideias, a acontecimentos ligados a Basileia. Acontecimentos que tiveram a ver com a guerra e com a paz – com as derivas da nave dos loucos.

Há meses atrás, na série «falando de democracia», publiquei um texto a que dei o título da obra «A Nave dos Loucos», acrescentando um subtítulo – «caos e democracia». Foi seu autor, Sebastian Brant (1457-1521), um jurista alsaciano de língua alemã, formado na universidade daquela cidade e que, em 1494, escreveu Das Narrenschiff ou, em latim Stultifera navis – «nave dos loucos», em português.

Dizia, entre outras coisas, como esse livro, obra considerada menor, mas que influenciou artistas como Bosch ( mostro aqui o seu quadro que tem o nome da obra de Brant), e Dürer, entre muitos outros por essa Europa fora. Colocava, cautelosamente, a hipótese de o nosso Gil Vicente se ter nele inspirado para alguns dos seus autos. Ocorreu-me também outro romance relacionado com Basileia – Os Sinos de Basileia, de Louis Aragon. Mas vamos primeiro à nave de Sebastian Brant. E o que mais adiante se verá.

Brant metia na Sultifera navis 112 tipos de loucos, representando clérigos, nobres, mercadores, poetas, camponeses e artífices. A cada louco, dedicava um capítulo e não se esqueceu de si mesmo – O Louco dos Livros e Dos Livros Inúteis, que, como ele, amavam a sua biblioteca mais do que o saber que ela lhes oferecia, transformando-se em coleccionadores de livros, mas, nem por isso, em pessoas sábias (com livros espalhados por toda a casa, – a carapuça serve-me).

Portanto, em cada capítulo retratava um vício humano personificado num louco – o louco da moda, o da avareza, o da discórdia, o da luxúria, o da gula, o da inveja, etc. Sobre todos, predominava a figura de Frau Venere (Vénus). É um poema moralista, abundando as sentenças bíblicas e os aforismos portadores da sabedoria conceptual da Idade Média. Representava-se ali uma viva angústia pela situação da Igreja, onde sopravam os ventos da Reforma da iminente desagregação do Sacro-Império, ameaçado na época por poderosos inimigos internos e externos. A Nave dos Loucos era a «Civitas christiana» à deriva num mar de loucura e de inovações «sacrílegas», resultantes do Renascimento.

Dizia como a narrativa inspirou o romance Ship of fools de Katherine Anne Porter e baseado nesse livro, um filme de Stanley Kramer – num paquete de luxo, em 1933, pessoas de diversos estratos sociais, viajavam do México para a Alemanha – durante a viagem, a situação mudou na Alemanha, Hitler subiu ao poder. Alguns passageiros, judeus por exemplo, vão alegremente a caminho do holocausto.

.Passava depois para a actual política partidária portuguesa e classificava-a de repugnante. Não compreendendo como se podem as pessoas preocupar com os políticos do governo e da oposição, quando quem os manipula são grandes empresários, grandes multinacionais, organizações internacionais. Vinha depois a moralidade da história, dizendo como numa barca cheia de gente alienada, vamos navegando na irremediável direcção do caos. Não seria inevitável, se soubéssemos exigir aquilo a que temos direito, se soubéssemos escolher entre nós os mais capazes de dirigir a barca e de escolher a rota.

Mas vamos elegendo como capitães os servos de poderes afastados da ribalta. Chegados à ponte de comando, perguntam aos patrões como e para onde devem conduzir a barca, pois não são eles os timoneiros da nave que nos conduz ao caos. São marionetas. Rostos e as bocas da corrupção, mas não o seu coração, os seus pulmões. «Uma nave de loucos conduzida por crápulas»., concluía.

Decorridos estes três ou quatro meses, o pântano adensou-se – novos escândalos, reais ou não. Temos a sensação de estar a ser governados não pelos poderes constitucionais, mas por entidades ocultas, servidas por jornalistas sem escrúpulos. A nave dos loucos com uma chusma de corruptos aos remos e com crápulas (os do costume e outros) a dar-lhes ordens. Voltemos a Basileia:

Foi ali assinada a Paz de Basileia – conjunto de três tratados de paz celebrados pela França em 1795 com a Prússia, Espanha e o Hessen-Kassel. Os acordos representaram o fim das guerras revolucionárias francesas contra a Primeira Aliança. Mas não foi uma paz duradoura. Foi também em Basileia que, em Agosto de 1897, se reuniram quase 200 representantes de 17 países para participar no Primeiro Congresso Sionista. O escritor judeu Theodor Herzl fez um discurso emocionado e emocionante: “Somos um povo. Todos os povos têm uma pátria. Precisamos de uma pátria nacional para nosso povo. Por isso queremos lançar a pedra fundamental para a casa que um dia vai abrigar a nação judaica”. Pode dizer-se que Israel (e o problema da Palestina) começou em Basileia.

Ainda a propósito de Basileia, lembrei-me de um outro livro, «Os Sinos de Basileia», «Les Cloches de Bâle», de Louis Aragon (1897-1982), o poeta comunista, Aragon foi um dos principais activistas do movimento surrealista que, nos seus primeiros anos, esteve ligado ao marxismo, até que, Breton, figura de proa do movimento abandonou o partido. Aragon ficou no PCF até morrer e, do surrealismo, passou ao realismo-socialista. Resistente destacado durante a ocupação alemã entre 19939 e 1944, além de maravilhosos poemas deixou-nos um ciclo novelístico em seis romances dos quais «Os Sinos de Basileia», é o último.

Situado nos anos que antecedem a Primeira Guerra Mundial, conta como três mulheres, muito diferentes entre si, interagem numa situação-limite – Diane, Clara Zetkin e Catherine, que vai das concepções burguesas ao anarquismo e daqui chega ao socialismo.

O romance conduz-nos até Basileia, em cuja catedral se realizou, em Novembro de 1912 um congresso socialista para prevenir o perigo de uma guerra imperialista cuja eclosão se temia a todo o momento. Mais de 500 delegados estavam presentes. Os sinos da catedral que tinham soado durante a manhã, calaram-se e ouviram-se os discursos de oradores inspirados, como Jaurés, que seria assassinado no ano seguinte. «Os sinos ouviam os oradores», diz Aragon.

O manifesto sobre a guerra foi aprovado por unanimidade. Prevenia os povos sobre o perigo do conflito mundial que se avizinhava. Mostrava os objectivos espoliadores da confrontação que os imperialistas preparavam e exortava os trabalhadores de todos os países a travar uma luta decidida pela paz, contra o perigo da guerra, a «contrapor ao imperialismo capitalista a força da solidariedade internacional do proletariado».

Quando começasse a guerra imperialista, o manifesto recomendava aos socialistas que utilizassem a crises económica e política provocada pelo conflito para lutar pela revolução socialista. Os dirigentes da II Internacional – Kautsky, Vandervelde e outros – votaram no congresso pela aprovação do manifesto contra a guerra. Porém, quando a guerra eclodiu, o Manifesto de Basileia, bem como outras resoluções dos congressos socialistas internacionais foram esquecidos por muitos dos mais destacados congressistas que lutaram nos exércitos dos seus países. porque se os sinos de Basileia escutaram as vozes do congresso, os poderes internacionais foram surdos e em 1914 eclodia a I Guerra Mundial. O bem-intencionado Manifesto de Basileia foi esquecido até pela maioria dos seus signatários. Os povos parecem gostar de ser conduzidos por loucos e por crápulas.

Um exemplo recente: no Chile, apesar da lição que Pinochet infligiu ao povo, no domingo passado, a maioria do eleitorado deu a Sebastián Piñera um milionário, político de direita, e o segundo lugar ao demo cristão Eduardo Frei II. Marco Enríquez-Ominami, o candidato de esquerda, ficou excluído da segunda volta a realizar em 17 de Janeiro. Ou seja, a democracia chilena leva o eleitorado do país a escolher entre dois candidatos que já se sabe que vão fazer tudo menos defender o interesse do povo.

Este mundo, esta civilização global, está a globalizar a corrupção, a droga, a miséria, o crime. Portugal está a transformar-se num país violento, onde é perigoso sair à noite nas ruas das nossas cidades. No regime democrático, os marginais aterrorizando os cidadãos pacatos e cumpridores, substituem os agentes da polícia política que, durante a ditadura, os ameaçavam. Aos centros de poder, eleitos por nós, vão chegando marginais de outro tipo que não nos assaltam junto ao multibanco de seringa em punho, mas nos retiram o dinheiro dos bolsos pela chamada «via legal». A Igreja contempla esta realidade, contribuindo com os seus marginais, pedófilos e quejandos, para a abençoar. Pobre gente que somos! Nas próximas eleições lá iremos ordeiramente eleger os timoneiros da nave.
Como no Chile, saberemos escolher os piores! A nave dos loucos continua a sua viagem rumo ao caos.
*
E prossigo com as minhas dedicatórias. Desta vez, o contemplado é o Nuno Castelo-Branco, cujos textos tanto gosto de ler (apesar de virem embrulhados em papel azul e branco). Transparece na sua escrita a sua cultura e a grande qualidade do seu carácter; apenas é monárquico para provar que está muito certo o aforismo segundo o qual ninguém é perfeito. Picardias aparte, um abraço Nuno! Dedico-o também à comentadora do Aventar, a Maria Monteiro, que torna, nos seus comentários, bem visível a sua opção por um mundo de consensos, de tolerância e de convívio amistoso com a diferença (infelizmente, o oposto do mundo real). Um abraço, cara Maria.

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