A máquina do tempo: Civitas solis – os conceitos de utopia e distopia na literatura

A literatura de ficção científica, como a policial, é por muitos considerada um género menor. No que se refere à policial, bastavam, entre outras, as obras de Conan Doyle, Dashiel Hammett, Raymond Chandler, Agatha Christie ou, mais próximo de nós, Manuel Vázquez Montalbán, para desmentir esse preconceito absurdo. Quanto à literatura de ficção científica, autores como H.G.Wells, George Orwell, Karel Capek, Ray Bradbury e Ursula K. le Guin, entre muitas dezenas de outros, tornam disparatada essa qualificação.

Na minha opinião, não existem géneros menores. Existem, sim, escritores menores. E, menores ou maiores, é a posteridade quem os classifica. Recordemos o exemplo de Fernando Pessoa que, para o público do seu tempo, quase nem existia, ofuscado por nomes como o de Júlio Dantas. Indo mais atrás, Camões, superado em fama e em tenças por Pêro Andrade de Caminha, o chamado poeta do Minho. Hoje, Camões e Pessoa são os dois ícones maiores da literatura e da cultura portuguesas. Pêro Andrade de Caminha e Júlio Dantas, são desconhecidos do grande público – nomes e obras para o trabalho necrófago dos coca-bichinhos.

Parecerá a alguns ousado que classifique «1984» como livro de ficção científica, até porque, não podendo dizer que Orwell não foi um grande escritor, resolveram o problema retirando a sua obra-prima da órbita de um género «menor». No entanto, «1984» corresponde em todos os itens da sua estrutura à tipologia da FC. É uma distopia pura, situada no futuro, 25 anos depois da publicação do romance. E o que é uma distopia? É um conceito com mais de cem anos, mas que, fora do âmbito restrito do meio literário, está pouco divulgado entre nós. Em síntese, é o oposto de utopia.

«Utopia» foi o nome de um país imaginário, palavra criada pelo humanista Thomas More (1480-1535). Usou os elementos gregos (ou) não e tópos (lugar), portanto não-lugar, ou lugar não-existente. Foi o título da sua célebre obra publicada em 1516. Na mesma esteira vai «A Nova Atlântida» (New Atlantis), de Francis Bacon, editada em 1627. Ambas se inspiram na »República» de Platão. Outra famosa utopia foi a de Tommaso Campanella na sua «A Cidade do Sol» (Civitas solis), publicada em 1602.

Considerada obra menor, entendo configurar já o conceito de distopia, pois a Cidade do Sol não é mais do que uma prisão-modelo, onde a margem de iniciativa dos cidadãos é nula – tudo está previsto. Inclusivamente, um ministro do Amor regula «a geração». Como o autor parece opinar que a sociedade do futuro deveria ser assim, digamos que «A Cidade do Sol» é subjectivamente uma utopia e objectivamente uma distopia.

Não é por acaso que o Renascimento, como era sua característica fundacional, apoiando-se na Antiguidade Clássica, neste caso em Platão, criasse este tipo de literatura em que sociedades ideais eram contrapostas à imperfeição da realidade do tempo. Sociedades imperfeitas, com aspectos caóticos agravados pela barbárie das guerras religiosas. Ao mesmo tempo, as navegações descobriam novas terras, o mundo alargava-se. Quem poderia impedir que, perante o caos do mundo real, se sonhasse que, algures, numa ilha ou num continente ignoto, existisse a civilização perfeita?

Quando todo o planeta foi conhecido, as utopias centraram-se no espaço exterior. A ficção científica é em geral utópica, mostrando-nos civilizações mais perfeitas. Savinien Cyrano de Bergerac (1619-1655), idealizando a vida na Lua – «História Cómica dos Estados e Impérios da Lua» (1657), seguida de «História Cómica dos Estados e Impérios do Sol» (1662). Depois Jonathan Swift (1667-1745), com as suas «As Viagens de Gulliver» (1726), que só aparentemente é uma história infantil, pois contém também os elementos utópicos e distópicos, característicos da ficção científica, mas sendo principalmente uma violenta sátira à sociedade britânica da época. Jules Verne (1828-1905) foi talvez o mais genuíno precursor da FC, mas a sua obra é pouco ilustrativa dos conceitos que estou a abordar. Digamos que Verne está na raíz da FC pura e simples – a perscrutação do futuro.

Claramente seguidor do cânone distópico é «A Máquina do Tempo», de H.G.Wells (1866-1946), na qual baseei o título desta série de textos. Numa sociedade situada num futuro longínquo, apesar duma aparente perfeição, a humanidade dividiu-se em duas sub-espécies – os morlock e os eloi, sendo que os primeiros se alimentam dos segundos. Não podia haver melhor retrato do modelo social desencadeado pela Revolução Industrial – a relação explorador/explorado que, na época vitoriana atingiu o seu apogeu, com crianças de cinco anos e mulheres grávidas a trabalhar em fábricas e minas, enquanto por Regent Street se pavoneavam ociosos dândis.

«Admirável Mundo Novo» (Brave New World, 1932), de Aldous Huxley (1894-1963), fala-nos de um futuro onde as pessoas são pré-condicionadas biologicamente (antevendo a manipulação genética) e condicionadas psicologicamente a viverem em harmonia com as leis e regras sociais numa sociedade organizada por castas. A sociedade não possui a ética religiosa e valores morais que supostamente regem a sociedade actual. As dúvidas e insegurança dos cidadãos resolvem-se com o recurso a uma droga, sem efeitos colaterais – a “soma”. Não existe o conceito de família e as crianças recebem educação sexual desde a mais tenra idade.

Ray Bradbury (1920) é o autor de um dos mais famosos arquétipos da literatura distópica – «Fahrenheit 451» (1953), romance adaptado ao cinema, em 1966, por François Truffaut. O romance apresenta um futuro onde, considerados subversores da ordem instalada, todos os livros são proibidos. As opiniões pessoais são consideradas anti-sociais e hedonistas. O pensamento crítico é suprimido. A sociedade é governada por uma oligarquia, através de consignas inspiradas no marketing. O protagonista trabalha como “bombeiro”(o que “queimador de livro”). O número 451 refere-se à temperatura (em Fahrenheit) a qual o papel ou o livro arde.

Na literatura portuguesa, ocorrem-me o poema de Daniel Filipe «A Invenção do Amor» e o de Egito Gonçalves «Notícias do Bloqueio», claras alusões à sociedade portuguesa onde tudo, até o amor, é vigiado. Fala-se de um distopia que já existe e que poderá agravar-se. Segundo Daniela Vieira Amaral, no seu estudo sobre utopia e distopia na literatura de Mia Couto, pós-independência, detecta uma tensão constante entre os temas utópicos e distópicos na obra do autor moçambicano após a independência.

Não me recordo de nenhum romance português distópico. E utópico também não, embora o Romantismo como movimento idealizador de uma sociedade harmoniosa, contivesse alguns elementos utópicos. Tal como o neo-realismo ou realismo socialista. Ao mostrar-nos com crueza os males das sociedades capitalistas, apontavam para a utopia dos «amanhãs que cantam». Num certo sentido, toda a arte é utopista. E a distopia?

A propósito de «1984», de George Orwell, falei sobre o conceito de distopia. Distopia é uma palavra com várias acepções – a mais corrente neste substantivo feminino é a de «situação anómala de um órgão». No sentido literário, significa o oposto de utopia. Não conheço nenhum dicionário português que incorpore a acepção literária do termo. O «Diccionario de la lengua española», da Real Academia, também não o integra.

Mas os bons dicionários ingleses registam-no nesta acepção – o Oxford ( o Advanced Learners, na sua 7ª edição), por exemplo, em dystopia, diz «an imaginary place or state in wich everything is extremely bad or unpleasant» a qual seria «um lugar ou estado imaginários onde tudo é extremamente mau ou desagradável», portanto, define-se por oposição á geografia utópica, onde se descrevem lugares ou estados onde tudo é perfeito e agradável.

Em todo o caso, nesta acepção, não é um neologismo, pois surge pela primeira vez numa intervenção de John Stuart Mill no Parlamento Britânico. Referindo-se a adversários, disse Mill ser demasiado elogioso chamar-lhes utópicos, pois considerava-se utopia algo demasiado bom para poder ser concretizado, mas o que esses adversários defendiam era demasiado mau para ser posto em prática.

Deviam, por isso, ser designados por dis tópicos. Como o prefixo grego dis significa mau, anómalo, e a palavra topos quer dizer lugar e ou que significa não, teríamos para utopia o significado lugar nenhum e para distopia, lugar mau. No fundo, a acepção que os nossos dicionários registam, «situação anómala de um órgão», explica o sentido do cânone literário – «situação anómala de um estado ou lugar».

A utopia, constrói-se por antinomia relativamente a uma dada realidade, aparecendo como um lugar ou um estado onde a organização é perfeita (de acordo com o conceito de perfeição da época); a distopia surge geralmente na perspectiva de uma realidade que já não é boa, mas que se pode ainda deteriorar. Em «1984», Orwell avisa os leitores do que pode acontecer caso se pretenda controlar os cidadãos.

Nineteen Eighty-Four é o romance distópico por antonomásia. Publicado em 1949, descreve o quotidiano de um regime totalitário e repressivo, mostrando como uma sociedade oligárquica colectivista pode reprimir quem a ela se oponha. A história é narrada por Winston Smith, um homem insignificante, que executa a tarefa de refazer diariamente a história do regime através da falsificação de documentos públicos e da literatura a fim de o governo do «Grande Irmão» estar sempre certo e ter sempre razão.

O romance celebrizou-se pela denúncia do controlo dos cidadãos e progressiva invasão dos direitos e garantias individuais. É das obras de ficção que mais influenciaram a linguagem –”Big Brother”, “duplipensar” e “novilíngua” são palavras usadas por pessoas que nunca leram «1984» .«Orwelliano” é usado comummente para referir as reminiscências distópicas ocorridas na vida real ou na ficção. Um estatuto semelhante ao de «kafkiano».

Foi considerado, quando da sua publicação, uma crítica ao socialismo. Numa carta escrita meses antes da morte, Orwell esclarece que é um socialista convicto (combatera pela República, na Guerra Civil de Espanha, sendo ferido); «1984» tenta retratar as perversões do socialismo – o fascismo, o nacional-socialismo, o estalinismo. Avisa que o totalitarismo «se não for combatido, pode triunfar em qualquer sitio». No ensaio «Why I Write» (Por que escrevo), auto-designa-se «socialista-democrático».

Utopia e distopia, dois cânones novelísticos que têm dado lugar a grandes obras literárias. Sabendo-se que, de algum modo, a utopia é uma constante da efabulação, no que se refere ao segundo conceito, os exemplos são menos abundantes. No entanto, o que aqui fiz foi referenciar apenas algumas das grandes obras que são tradicionalmente classificadas como distópicas.

Foi uma breve viagem por um tema que daria para vários textos. Esta crónica é dedicada ao João José Cardoso e ao José Freitas, que zelam por que este blogue não se transforme numa utopia distópica. Abraços, amigos.

Numa das próximas viagens, visitaremos algumas utopias políticas. E não esquecerei nessa viagem uma pequena visita guiada, pelo mundo distópico em que vivemos. Porque se a profecia de Orwell não se cumpriu, a realidade que temos não me parece muito melhor. Mas basta, por hoje. Oxalá esta breve dissertação sobre utopia e distopia não se tenha transformado, para quem se deu ao trabalho de a ler, num exercício de «estopada».

Comments

  1. Carla Romualdo says:

    A propósito das imagens, sons e palavras que evocam o Inverno e que andamos a resgatar para celebrar o solstício, a tua referência à Ursula le Guin fez-me lembrar o “A mão esquerda das trevas” (acho que é essa a tradução portuguesa), no qual a descrição do Inverno glaciar daquele planeta deixa quem lê a bater o dente

  2. Carlos Loures says:

    Sou um leitor fiel da Ursula le Guin e julgo que li esse livro de que falas. Vou ver – «A mão esquerda das trevas». De uma forma geral, os livros dela estão na «Argonauta» ou na Europa-América.

  3. Carla Romualdo says:

    No original é “The left hand of darkness” e há uma versão portuguesa com edição recente

  4. Carlos Loures says:

    Vou ver se tenho. Se não tiver, compro (mas acho que a «Argonauta» publicou). Obrigado. Um bom ano para ti e para ois teus.

  5. Nunca por nunca estopada, Carlos. Venham estopadas e estocadas destas, muitas vezes.

  6. Luis Moreira says:

    Carlos, que belo e importante texto.

  7. Carlos Loures says:

    Obrigado, Luís.

  8. Carla Romualdo says:

    Um bom ano também para ti, Carlos.

  9. RODOLFO VENICIUS RODRIGUES GOMES [estudante] says:

    Ótimo texto, mas eu gostaria de obter maiores informações sobre a distopia na obra As Viagens de Gulliver, de Swift. Existe algum artigo ou tese de doutorado que trate desse assunto nessa obra em especifico? Se alguém puder me responder envie o link do material para, rodolfovrg1972@gmail.com

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