Tarde de Natal, tédio e rabanadas, sofá e manta. Constipação interminável faz aborrecer qualquer tentativa de leitura. Comando da televisão: Disney e quejandos, Mr. Bean, patinagem artística, bocejo. Subitamente, um milagre. Paramount Pictures, preto e branco: “O Homem Que Matou Liberty Valance”. Mestre John Ford dirige James Stewart e John Wayne. O mau da fita é Lee Marvin.
A história é simples: um pistoleiro sem escrúpulos aterroriza uma cidadezinha do velho Oeste, num tempo em que os rancheiros poderosos tentam impedir que o território se transforme num Estado e assim possa fazer parte da Confederação.
Ser um Estado da Confederação significa cumprir a Constituição e respeitar os direitos que ela institui. O fim da lei da bala.
A democracia é algo de vago e nebuloso, muitos homens nunca votaram, desconhecem esse novo poder. Os poderosos persuadem com pistoleiros contratados, como o famigerado Liberty Valance.
James Stewart é o advogado, intelectual, idealista. Não usa arma, acredita na lei, no poder do diálogo, na democracia. Mal chega à cidade leva um arraial de porrada de Liberty Valence, a quem enfrenta durante um assalto.
John Wayne é um rancheiro modesto, durão, gatilho rápido, desdenhoso do poder da lei, mas capaz de defender quem nela acredita.
Wayne irrita-me sempre, seja qual for o filme. Mas, neste, essa irritação tem os seus momentos de fraqueza, e às vezes dou por mim a lamentar que o seu castigo seja tão severo. Em “O homem que matou Liberty Valance”, Wayne é o duro, que desdenha o mundo dos ideais e das palavras, é o pragmático, que constrói o celeiro e assiste ao parto das éguas, e aspira a casar com uma boa mulher, cuja honra possa defender com o dedo no gatilho.
Na famosa cena em que Stewart o deita ao chão com um soco não deve haver lingrinhas nenhum no mundo que não se sinta um pouco vingado.
No final, é Stewart quem vence, embora se possa dizer que, nesta história, o final é feliz para o colectivo e, até certo ponto, um tanto infeliz para os indivíduos.
Ao escolher filmar esta história, talvez Ford tenha querido dizer que o avanço nasce do contributo de todos. Sem a protecção do rancheiro rude e destemido, o advogado teria acabado com uma bala na cabeça, e os homens e mulheres daquelas paragens abandonadas teriam continuado entregues à lei do mais forte.
Será a isto que os católicos chamam espírito natalício?
Grande filme. Devo tê-lo visto uma boa dúzia de vezes. Como se costuma dizer,´«já não se fazem filmes assim».
Bem me lembro de “Rio Bravo” com Wayne a fugir da rapariga do saloon quase até à cena final. A história era mais ou menos a mesma, mas aqui Wayne era o xerife.
Um dos seus ajudantes, era Clif Richard, que veio a ser muito conhecido como cantor de rock e o que mais se aproximou de Elvis, até pelo aspecto físico.