Primeiro de Agosto de 1900. Lisboa está transformada num caldo morno. No Rossio, onde páro para beber um fresco capilé, à sombra dos prédios, nos cafés e esplanadas discute-se política, a revolta dos boxers, mas sobretudo o atentado mortal contra o rei Humberto de Itália. Subo o Chiado, lentamente, parando de vez em quando para me abanar com o «palhinhas».
Quando entro na redacção da Rua Larga de São Roque, o Neves tem um ar «de caso». Vejo logo que há mouro na costa. O Neves é um major de artilharia na reserva a quem a administração do jornal confiou a chefia da redacção. Coxeia de uma perna, recordação de uma zagaiada em Coolela, voz estentórea, modos bruscos – «oficial e cavalheiro», costuma dizer-se. O Neves esqueceu decididamente a segunda premissa da função castrense.
É para todos um mistério o motivo que levou a administração a escolhê-lo. Dizem uns que é por ser muito sério, outros por ser maçon como o dono do jornal. Há quem diga que foi pelas duas razões. Não sei. Gosto dele, embora à vezes se porte pior do que as cavalgaduras com que até há pouco lidou. Quando, pedindo licença, entro no seu gabinete, não diz nada. Tira ostensivamente o relógio do colete, ergue-lhe a tampa e fica a olhá-lo como se na pequena supefície esmaltada houvesse resposta para os problemas do mundo. É a sua maneira de me dizer que, mais uma vez, cheguei tarde.
Pergunta com os seus modos bruscos se já tenho pronto o texto sobre o voo do conde von Zeppelin. Está pendente de uma informação que espero obter ainda hoje – digo – Vou terminá-lo esta noite e trazê-lo amanhã – O Neves abre-me os olhos e, numa das suas frequentes crises de irritação, ergue-se da cadeira, inclina-se na minha direcção e grita, salpicando-me com perdigotos:
– Veja lá se não se atrasa mais. Aqui nesta casa, enquanto for eu a comandar, pendentes só os tomates!
Depois tosse, faz uma e pausa para se acalmar e, em voz mais normal, pergunta-me se conheço Paris. Claro que sim. Acabado o curso, o meu pai pagou-me duas semanas de regabofe na cidade das luzes. Bem, o que ele me disse quando me entregou o cheque sobre o Credit Lyonnais é que era um contributo para completar a minha formação cultural. Nem vocês calculam como aquelas duas semanas ajudaram à minha formação cultural!
Respondo afirmativamente ao Neves. Que depois me pergunta se falo francês.
– Bien sûr, monsieur, respondo-lhe, aprimorando a pronúncia. E sou como o gato maltês, também me ajeito ao piano, acrescento. Mantém o carão fechado. Não tem sentido de humor, mas reconheçamos que a minha réplica não teve lá muita graça. E explica-me no seu linguarejar castrense que o Dr. Seabra Pinto, o director do jornal, quer que vá alguém a Paris entrevistar o Eça de Queirós, pois o Sousa, nosso correspondente local, telegrafou a dizer que o homem regressou da Suíça desiludido pelos médicos, que está por um fio.
E que ele, Neves, apesar de tudo, (pausa e olhar suspicaz) se lembrou de mim. Depois, para que não me sinta muito elogiado, acrescenta que «os melhores, os verdadeiros jornalistas» estão a banhos e que «quem não tem cão caça mesmo com gato». Finjo não ouvir a última parte. Tratamos dos aspectos práticos – passaporte, bilhetes do comboio, vaucher do hotel, dinheiro de bolso para pequenas despesas…
Para quem não saiba, o Eça é o Zeus do meu Olimpo. Por isso, a notícia de que a sua doença pulmonar, que lhe levou já três irmãos, se agravou ao ponto de se julgar iminente o fim, põe-me um nó na garganta e não sou capaz de continuar a caçoar com o Neves. Agradeço-lhe o ter-se lembrado de mim, apesar de tudo, e digo-lhe que só espero estar à altura da missão. Habituado às minhas larachas, que até nem parecem desagradar-lhe embora nunca me dê troco, fita-me nos olhos, não vá eu estar de novo a mangar. Percebe que não estou. E começa a fornecer-me pormenores sobre a viagem.
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Da Estação do Rossio até ao Entroncamento no comboio ronceiro. Depois apanho o Sud-Express. Durmo e acordo. O calor é infernal. Já em terras de Espanha, lembro-me de uma discussão ao entardecer entre um gordo padre espanhol e um escanzelado comerciante de Lisboa. O comerciante afirma que estamos no século XX. O padre diz que continuamos no século XIX até 31 de Dezembro. Só em 1 de Janeiro de 1901 começa o novo século. Vendo-me acordado, põem-me ao corrente do diferendo. Ambos me querem como aliado. O lisboeta pisca-me um olho, apelando à solidariedade nacional. Não tinha ainda pensado no assunto, digo, e considerava-me já no século XX. Mas vistas bem as coisas (penso em voz alta, com os meus dois companheiros de viagem aguardando o meu veredicto), suponhamos que estamos no começo de uma nova era. Só no dia 1 do ano 1 é que a era começa. O dia 1 do ano 1 é, neste caso, o dia 1 de Janeiro de 1901.
– Por supuesto! – diz triunfante o gorducho.
– Cebolório! – comenta despeitado o magricela.
Eu volto a adormecer.
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Já depois de Hendaia, com outros viajantes no compartimento, pela janela do comboio deslizam paisagens e pela minha mente pensamentos. Que sei eu sobre Eça de Queirós, além da leitura atenta e repetida das suas obras? Como num romance camiliano, o seu nascimento esteve mergulhado em mistério. No assento de baptismo reza: «José Maria – filho natural de José Maria d’Almeida de Teixeira de Queirós e de Mãe incógnita». Mãe incógnita?
A verdade só mais tarde se saberá: O Dr. José Maria de Almeida Teixeira de Queirós, jovem delegado do procurador régio em Ponte de Lima, manteve amores clandestinos com Carolina Pereira de Eça, filha do tenente-coronel José António Pereira de Eça, já falecido. Carolina tem dezanove anos e, sua mãe opõe-se ao namoro. Por isso, só depois da sua morte, em 1849 e quando o pequeno José Maria tem já quatro anos, os pais casam. Até então ele esteve entregue aos cuidados de uma ama. Quando esta morre é acolhido em casa da avó paterna e quando, em 1855, esta por sua vez falece é internado no Colégio da Lapa, continuando sempre longe dos pais, a sua desolada infância. No colégio, terá como mestre Joaquim da Costa Ramalho, pai de Ramalho Ortigão, seu futuro grande amigo.
Depois, Coimbra, o convívio com Antero, com Teófilo Braga, o despertar para a vida literária… Com um lápis afiado vou anotando num caderno as perguntas que tenciono fazer ao escritor. Oxalá ele esteja em condições de me responder e aceite receber-me. Oxalá os médicos estejam enganados e a tuberculose não o ceife.
(Continua)
*Nota: Esta narrativa constitui uma adaptação da biografia ficcionada de Eça de Queirós que publiquei em 2000 (C.L.)
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