Memória descritiva: Aquarela do Brasil – a mentira getulista

Memória descritiva, foi o título que dei a um poema incluído no meu livro «O Cárcere e o Prado Luminoso» (1990). Publiquei-o aqui, semanas atrás. Como se sabe, esta é a designação dada aos estudos preliminares de arquitectura, onde se define basicamente a tipologia do projecto, materiais a utilizar, tipo de acabamentos, etc.. O sentido aqui é diferente, mas também muito literal – a memória, a minha e a dos autores que leio, vai passando para pequenos textos – «memórias descritivas». Hoje, escolhi como tema a «Aquarela do Brasil», a canção de Ary Barroso. Já verão porquê. Primeiro, ouçamos a bela interpretação de Gal Costa.

No ano que acaba de terminar passam 70 anos sobre a composição por Ary Barroso de «Aquarela do Brasil». O hino nacional brasileiro foi criado por Francisco Manuel da Silva (1795 – 1865). Pois, para muitos «Aquarela do Brasil» é o como que um outro hino do país. Numa sondagem organizada pela Academia Brasileira de Letras, a «Aquarela» ficou em primeiro lugar.

A letra, também de Ary Barroso, canta um Brasil idílico, uma terra de sonho, onde o samba é rei. Será que, em 1939, o Brasil era assim tão agradável para ser pintado numa aguarela de cores tão vivas? Talvez o fosse para os ricos e para os turistas. E para os brasileiros?

Em 1939, ano em que eclodiu a II Guerra Mundial, governava a República brasileira Getúlio Vargas. Chegara ao poder em 1930 mercê de um golpe militar, pondo termo à chamada República Velha e depondo o presidente Washington Luís. As instituições democráticas foram desmanteladas – dissolução do Congresso e das assembleias legislativas. Em 1932, eclodiu em São Paulo uma revolução constitucionalista, derrotada pelas forças fiéis ao Governo. Em 1934, o regime ditatorial consolida-se ao ser aprovada uma nova Constituição, inspirada na de Weimar. Getúlio foi eleito para um mandato de quatro anos.

Em 1935, eclodem novas revoltas e movimentos insurrecionais organizados pelo Partido Comunista Brasileiro, reprimidos duramente pelo Governo. Em 1937, dando como pretexto a existência de uma conspiração comunista para tomar o poder, em 10 de Novembro, Getúlio desencadeia um golpe de Estado,. É o Estado Novo (nome igual ao do regime corporativo de Salazar e, segundo tudo o indica, nele inspirado). Em 1 de Janeiro de 1938, faz hoje 71 anos, Getúlio promulga uma nova Constituição

O Brasil, nos sete anos seguintes, até 1945, seria governado de forma autoritária, num regime de figurino fascista. Em «Memórias do Cárcere», Graciliano Ramos (1892-1953) descreve, em páginas de grande beleza e rigor, o que acontecia aos presos da ditadura getulista – torturas e outras sevícias, quando não mesmo a morte. O povo, não falando numa minoria de privilegiados, continuava a viver numa pobreza lancinante, alimentado por discursos demagógicos de recorte justicialista, tão ao gosto dos caudilhos latino-americanos.

Foi neste quadro de miséria, dor e repressão que Ary Barroso (1903-1963) escreveu a sua «Aquarela do Brasil», o retrato falso de um país triturado pela repressão getulista. Foi, no entanto, um grande êxito. Na imaginação dos que viviam num mundo em guerra, a existência de um paraíso, era reconfortante. Diz-se que numa noite chuvosa do Rio, Ary estava na sala de sua cãs conversando com a mulher e o cunhado, quando se sentou ao piano e compôs de um jacto a música e a letra de «Aquarela do Brasil». Disse depois, que pretendera libertar o samba das tragédias da vida e das paixões sensuais que dominavam as letras da canção nacional. Talvez sem o pretender, ajudou a branquear um regime iníquo, brutal e corrupto.

Falei aqui recentemente de distopia na ficção literária e, particularmente, em «1984», de George Orwell. O filme baseado no livro, realizado em 1985, por Terry Gilliam, chamou-se «Brazil» e, como tema recorrente, soa a «Aquarela do Brasil». Num mundo disfuncional, como é o que Orwell cria na sua obra, não haveria tema melhor para a banda sonora – uma realidade cruel e um retrato colorido, belo e falso dessa realidade.

As bandas sonoras de filmes como «Stardust memories» («Memórias», 1980), de Woody Allen, ou «The Aviator» («O Aviador», 2004), de Martin Scorsese, incluíram a «Aquarela». Para não falar no «Olá, Amigos» (1943), de Walt Disney e, mais recentemente , num episódio dos Simpson. Uma inspiração repentina que permitiu a Ary Barroso ser cantado por Frank Sinatra, Bing Crosby, Rosemary Clooney, Harry Belafonte…

Um país onde imperava o terror de um governo fascista e a miséria endémica coberta pelo manto diáfano de inomináveis assimetrias sociais, aparecia transmutado em paraíso, naqueles anos em que o horror da guerra tornava apelativo o bilhete postal colorido que Ary Barroso compôs numa noite em que a chuva flagelava o seu Rio de Janeiro.

Comments

  1. carla romualdo says:

    Muito interessante. Já leste o “Leite derramado”, o último do Chico Buarque?

  2. Carlos Loures says:

    Vou ler. Obrigado pela dica.

  3. Luis Moreira says:

    É o aproveitamento que os políticos fazem da arte e do desporto, por exemplo. Nos anos 60, as transmissões dos jogos do Benfica serviam para mostrar um país que não existia…e não quero azedar ninguem hoje, mas isso foi feito, cientificamente, nuns certos paraísos…

  4. Carlos Loures says:

    Pois foi – referes-te à União Soviética, penso. Os regimes autoritários sempre instrumentalizaram as letras, as artes, o desporto. A «Casa Portuguesa», do Reinaldo Ferreira, cantada pela Amália, foi utilizada pelo regime para difundir a imagem que Salazar queria que o país tivesse. Mas não teve qualquer eficácia – as pessoas apercebiam-se que a canção nada tinha a ver com a realidade. Com a música do Ary Barroso, dada a grande difusão internacional que obteve, sobretudo devido ao filme do Walt Disney, passou-se um fenómeno diferente – a canção criou uma cortina de fumo sobre a dura realidade da vida dos brasileiros naqueles anos. A aldrabice triunfou.

  5. Aventar says:

    Dois Comentários recebidos via Facebook

    Gostei de ver seu texto, que mostra o seu interesse pelas coisas do Brasil. Muito obrigado!

    Só me atrevo a fazer algumas observações sobre ele, e as faço com intuito apenas construtivo; a saber:

    a) o Hino Nacional Brasileiro não foi composto por Carlos Gomes. A sua música foi composta em 1822, por Francisco Manuel da Silva e teve várias letras, a última das quais ainda valendo é a de Joaquim Osório Duque Estrada, datada de 1922. Para melhores informações sobre o hino leia a Wikipédia no link:

    (http://pt.wikipedia.org/wiki/Hino_Nacional_Brasileiro)

    b) a sua cronologia da Era Vargas está basicamente correta, mencionado-se apenas que a Carta de 1937 teve inspiração no fascismo italiano e na constituição polonesa então vigente; por isto ela acabou sendo chamada de a “POLACA”.

    c) sobre a Era Vargas leia mais no site da FGV-CPDOC, que é excelente e muito fiel à história; para tal acesse:

    (http://cpdoc.fgv.br/)

    E tenha a certeza, que a isto escrevo, apenas para colaborar com você.

    E não esqueça de continuar a discorrer sobre o Brasil.

    abraços

    …………….
    Agora sobre “Aquarela..” e “Ary..”… realmente, é correta a época de sua composição, que foi em pleno Estado Novo.
    A canção, por exaltar as qualidades e a grandiosidade do país, marcou o início do movimento que ficaria conhecido como samba-exaltação.
    Este movimento, por ser de natureza extremamente ufanista, era visto por vários como sendo favorável à ditadura de Getúlio Vargas, o que gerou críticas à Barroso e à sua obra. No entanto, a família do compositor nega que ele algum dia tenha sido favorável à política de Vargas, destacando o fato de que ele também escreveu “Salada Mista” (gravada em outubro de 1938 por Carmen Miranda), uma canção contrária ao nazi-fascismo do qual Vargas era simpatizante. Vale notar também que antes de seu lançamento, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) vetou o verso “terra do samba e do pandeiro”, por entender que era “depreciativo” para o Brasil. Barroso teve de ir ao DIP para convencer os censores da preservação do verso.
    Ainda, o sucesso de “Aquarela do Brasil” demorou a ocorrer. Em 1940, não conseguiu ficar entre as três primeiras colocadas no concurso de sambas carnavalescos, cujo júri era presidido por Heitor Villa-Lobos, com quem Barroso cortou relações, que só foram retomadas quinze anos depois, quando ambos receberam a Comenda Nacional do Mérito.
    O sucesso só veio após a inclusão no filme de animação Saludos Amigos, lançado em 1942 pelos Estúdios Disney. Foi a partir de então que a canção ganhou reconhecimento não só nacional como internacional, tendo se tornado a primeira canção brasileira com mais de um milhão de execuções nas rádios estadunidenses. Devido à enorme popularidade conquistada nos Estados Unidos, a canção recebeu uma letra em inglês do compositor Bob Russell, escrita para Frank Sinatra em 1957. Desde então, já foi interpretada por cantores de praticamente todas as partes do mundo.
    Ou seja, consoante esta versão, no fundo o sucesso da bela canção se deveu mais a força da mídia norte-americana, que a qualquer esforço de Vargas e seus apoiadores.

    Fonte:
    Wikipédia, a enciclopédia livre
    http://pt.wikipedia.org/wiki/Aquarela_do_Brasil
    Acesso em: 01/01/2010.

    Um grande abraço para você…

    João Lima

  6. Luis Moreira says:

    Durante muitos anos só os jovens “escolhidos” é que eram mostrados ao Ocidente.Na arte, no desporto. Eu estive em Berlim nos anos a seguir ao muro e posso dizer-te que era como encontrar, a cada esquina, jovens modelados por Miguel Ângelo, de uma perfeição (não digo beleza…) só possível em laboratório…todos de Leste.

  7. Carlos Loures says:

    Caro João Lima: Estou muito grato pelos seus comentários. Como poderá ver, tendo confirmado a justeza da sua correcção sobre a autoria do Hino do Brasil, apressei-me a introduzir a respectiva emenda. Imagine que a «informação» sobre a autoria do grande compositor Carlos Gomes a colhi de uma compatriota sua que vive em Lisboa. Mais me valia, como você diz, ter ido à Wikipedia. Quanto ao resto, aí estão os seus comentários que enriquecem e amplificam o âmbito do meu texto. Receba um agradecido abraço.

  8. Carlos Loures says:

    Luís, nessas questões de propaganda, os métodos das ditaduras de esquerda são muito semelhantes às de direita.

  9. Luis Moreira says:

    Claro, vivem da mentira e da opressão!
    Já agora gostava de colocar uma pergunta ao nosso leitor e amigo João Lima. O céu pintado na vossa bandeira, com as estrelas, e o arco do Equador, tem algum significado especial? É que cá ,em Portugal, dizem-me que se trata da noite em que os Portugueses chegaram ao Brasil ( são cálculos matemáticos, conhecidos como são, hoje, os movimentos aparentes daquelas constelações, “anda-se” 500 anos para trás).Aí no Brasil, disseram-me que não , que são a representação das regiões em que está dividido, administrativamente o Brasil.
    Qual é a verdade oficial?
    Abraço

  10. carla romualdo says:

    E já agora, caro João Lima, que nos pode contar sobre a polémica actual com a criação da Comissão Nacional da Verdade, que irá investigar o que aconteceu durante a ditadura militar?

  11. Carlos Loures says:

    Boa questão Carla. Luís, enquanto o João Lima não te esclarece, eu avanço com a explicação que conheço – as vinte sete estrelas representam os estados que compõem a República Federativa do Brasil. Oxalá, esta informação esteja correcta. Esperemos pelo João.

  12. Luis Moreira says:

    Carlos, pois, tambem me disseram isso, mas a primeira explicação é muito mais interessante, e não se percebe porque terão as estrelas aquela configuração, e estarem acima do horizonte…

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