Esta série que hoje inicio tem um formato diferente das que anteriormente dediquei à poesia – neste espaço vão conviver poetas famosos, poetas populares, poetas menos conhecidos… Não será apenas gente já falecida – em alguns casos falarei de poetas vivos. E, de vez enquando, meterei um poema meu.. Para começar escolhi o Manuel da Fonseca, grande poeta e ficcionista.
Falei com Manuel da Fonseca por duas vezes. A primeira, faz hoje (precisamente) 50 anos, foi na noite de 2 de Janeiro de 1960. Como é posso referir com precisão, a data? Porque sei que foi no Inverno de 1960, no dia do aniversário do Mário Henrique Leiria (foi só ver em que dia tinha nascido – 2 de Janeiro de 1923).
Um grupo numeroso – o António José Forte, o Virgílio Martinho, o Saldanha da Gama, o Henrique Tavares e mais alguns de que não me recordo, fomos convidados para a festa de aniversário do Mário Henrique. Quando chegámos à Vivenda Maria Xavier, em Carcavelos, residência do Mário, uma das pessoas que já lá estavam, era o Manuel da Fonseca.
Na sala, brilhava a jóia do Mário Henrique, Fipsy, a linda alemãzinha, com quem acabara de casar e que no ano seguinte lhe passaria as palhetas, fugindo para o Brasil. O Mário foi atrás dela… mas essa é outra história. Fomos bebendo, comendo, conversando. O Manuel observava aquele grupo alienígena de surrealistas (uns autênticos, outros, noviços de pacotilha, como eu). Sorria e bebia lentamente, nunca se misturando na balbúrdia. Vinho tinto. Nós íamos consumindo brande, uísque, vodka (nome que o Mário deu mais tarde a um cão). Sentei-me ao pé dele. Fez-me muitas perguntas – o que fazia, o que tinha escrito…
Lá fui respondendo respeitosamente, pois o Manuel era um «ancião» de 49 anos (bem mais velho do que o meu pai, na altura) e, por outro lado, os seus livros tinham começado a ser muito comentados. Eu lera a «Seara de Vento», que me tinha encantado. Falámos sobre o romance e a propósito de uma observação que fiz, contou-me uma história. Ainda um dia hei-de contá-la aqui.
A festa acabou na praia. Estava uma noite bonita, gélida mas estrelada. Bebemos das garrafas com que o Mário nos aprovisionara à despedida. Andámos à estalada para aquecermos e, sobretudo, para nos divertirmos – o Virgílio a certa altura puxou de um punhal (a sério; ou parecia – talvez fosse uma faca de cortar papel) e abriu um círculo em seu redor. Depois, vendo o nosso susto, desatou a rir-se e deixou cair a «arma». Erro fatal, pois levou um arraial de porrada por nos ter assustado.
Adormecemos. Acordámos, raiava a manhã, enregelados e como a maré subira, alguns estavam a ficar encharcados. Fomos para casa de um amigo que fazia parte do grupo e que morava por ali perto. Não me ocorre o nome, lembro-me que era casado com uma enorme finlandesa. Dormimos mais umas horas, tomámos banho e vestimos roupas que ele nos emprestou. Coisas de gente jovem. Antes de condenar as tontices da juventude de hoje, num acto de contrição, lembro-me das da minha geração, a dos famosos anos 60.
A segunda vez, foi talvez no Verão de 1992. Não tenho pistas que me permitam fazer segundo brilharete. Foi uma reunião na editora que o administrador quis transformar numa coisa solene, formalismo que o Manuel sabotou puxando, por diversas vezes, num saco que pusera debaixo da mesa, uma garrafita envolta em papel pardo, de que bebia uns goles para combater o calor. Era vinho, branco, desta vez, pareceu-me. Antes do administrador chegar ainda tive tempo de lhe recordar o aniversário do Mário Henrique. Rimos a bom rir. Mas não o voltei a ver. Estava parado no trânsito, no viaduto Duarte Pacheco, quando ouvi na rádio a notícia da sua morte, em 11 de Março de 1993.
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Manuel da Fonseca, sendo considerado um dos pioneiros da poesia neo-realista, não deverá, a meu ver, ser considerada a sua obra poética (tal como a novelística) como um paradigma desse respeitável movimento. A sua poesia, embora pela temática, quase sempre ligada ao real quotidiano, se integre no cânone do neo-realismo, serve-se de uma linguagem de tal modo rica, próxima da de Federico García Lorca que era, como se sabe, gongórica, ornada de símbolos e metáforas. Manuel da Fonseca rompe assim com o despojamento formal que constituía uma das imagens de marca do movimento, aproximando-se mesmo do surrealismo.
Para um poeta com as asas de Manuel da Fonseca, que nada preocupado estava com a obediência ou seguimento de escolas ou de movimentos, é talvez redutor amarrá-lo ao carro de qualquer um deles. Digamos que era um grande escritor, um dos maiores do século vinte. Esqueçamos os rótulos.
Manuel da Fonseca nasceu em Santiago do Cacém em 1911 e faleceu em Lisboa em 1993. Fez parte do grupo do «Novo Cancioneiro». Na sua obra salienta-se «Rosa dos Ventos», uma colectânea de poemas, (1940), o livro de contos «Aldeia Nova»(1942), «Fogo e as Cinzas» (1953) e os romances «Cerromaior», «Seara de Vento» (1958), «Poemas Dispersos» (1958). Era presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores quando esta instituição atribuiu o Grande Prémio da Novelística a Luandino Vieira pelo seu livro «Luuanda», facto que determinou o encerramento daquela associação de classe. De «Poemas Dispersos», escolhi o poema seguinte:
Solidão
Que venham todos os pobres da Terra
os ofendidos e humilhados
os torturados
os loucos:
meu abraço é cada vez mais largo
envolve-os a todos!
Ó minha vontade, ó meu desejo
— os pobres e os humilhados
todos
se quedaram de espanto!…
(A luz do Sol beija e fecunda
mas os místicos andaram pelos séculos
construindo noites
geladas solidões.)
Na voz de Adriano Correia de Oliveira, outro poema de Manuel da Fonseca – «Tejo que levas as águas» («Poemas para Adriano». 1972), com música do próprio Adriano:
Conheci Manuel da Fonseca em 1986. Algum cansaço físico e falta de audição eram como que anulados pela vivacidade e gosto em falar com os jovens na escola. Todos ficámos fascinados com o excelente contador de histórias que, até então, só conhecíamos dos livros.
É também excelente este seu texto que em tempos postei:
http://diasquevoam.blogspot.com/search?q=O+vagabundo+da+esplanada
É um dos poetas de que mais gosto.
É verdade, Teresa, o Manuel da Fonseca era um grande contador de histórias. Acusavam-no de gastar demasiado tempo a contá-las em vez de as escrever. A que me contou em casa do Mário Henrique é interessante e transformei-a, mas tarde, num case study. Hei-de contá-la. A do vagabundo na esplanada, é deliciosa. Obrigado, Teresa, pelo comentário e pela evocação.
Ficaremos então a aguardar com interesse o relato dessa história/estória:)
Contarei a história, Teresa, numa próxima crónica. Pequena, mas encerrando uma judiciosa lição.
Bom trabalho, Carlos, como era de esperar.
O Manuel da Fonseca era um grande escritor. Não sei se reparaste na beleza acutilante da letra que ele escreveu para o Adriano. Consegue dizer coisas de uma grande violência sem ser panfletário, mantendo um registo poético.