Poesia & etc. – Gira, gira…

Às vezes não vejo os vídeos que acompanham os textos e, portanto, compreendo que, relativamente aos vídeos que coloco, haja leitores que façam o mesmo. No caso de hoje, peço o favor de escutarem esta interpretação do tango «Yira, Yira» por Carlos Gardel, pois é importante ouvi-lo para compreender o que quero dizer:

Num texto de uma outra série, contei-vos os trabalhos que passei para traduzir um livro do grande escritor argentino Ernesto Sábato, («Heróis e Túmulos»). Estudara língua e literatura castelhana, mas a cada passo surgiam vocábulos que desconhecia e que os dicionários, incluindo o da Real Academia, não registavam. Escrevi então ao Sábato dando-lhe conta da minha dificuldade e ele, muito amavelmente, enviou-me um extenso glossário com termos argentinos e, inclusivamente com modismos «porteños», ou seja, bueno-airenses.

Na letra do tango cantado pelo Gardel, existem casos desses. A começar pelo título, Yira, Yira (pronunciado de forma semelhante á do português) – em castelhano dir-se-ia «Gira, gira», pronunciando-se como fonema fricativo velar surdo – velar, por ser articulado junto do véu palatino (os portugueses quando querem falar portunhol, resolvem o problema, transformando o «g» ou o «j» em «r» – exemplo – rúlio iglésias).

Se não perceberem todas as palavras, perceberão o sentido que é profundamente singelo – quando se cai em desgraça não se pode contar com ninguém. Cair na miséria é considerado um crime. Bater às portas pedindo ajuda, trabalho, calor humano, é inútil. Até amigos, a quem se deu a mão e se ajudou quando precisaram, se afastam incomodados. Um necessitado é uma pessoa incómoda. – um desgraçado é como um leproso.

O mundo, as pessoas que o habitam, estão preocupadas com os seus problemas, por vezes com as suas ninharias. Ver uma telenovela ou um jogo de futebol na televisão, pode ser mais importante do que escutar um amigo ao telefone desabafando as suas mágoas. A má sorte de cada um, cada um que a resolva – ao mundo nada lhe interessa, gira, gira…

Cuando la suerte qu’es grela
fayando y fayando
te largue parao…
Cuando estés bien en la vía,
sin rumbo, desesperao…
Cuando no tengas ni fe,
ni yerba de ayer
secándose al sol…
Cuando rajés los tamangos
buscando este mango
que te haga morfar…
La indiferencia del mundo
que es sordo y es mudo
recién sentirás.

Verás que todo es mentira
verás que nada es amor
que al mundo nada le importa
Yira… Yira…
Aunque te quiebre la vida,
aunque te muerda un dolor,
no esperes nunca una ayuda,
ni una mano, ni un favor.

Cuando estén secas las pilas
de todos los timbres
que vos apretás,
buscando un pecho fraterno
para morir abrazao…
Cuando te dejen tirao,
después de cinchar,
lo mismo que a mí…
Cuando manyés que a tu lado
se prueban la ropa
que vas a dejar…
te acordarás de este otario
que un día, cansado,
se puso a ladrar.

Verás que todo es mentira
verás que nada es amor
que al mundo nada le importa
Yira… Yira…

Hoje o meu texto foi mais sobre o «etc.» do que sobre poesia. Embora o tango, com música e letra de Enrique Santos Discépolo (1901-1951), cantado pelo Gardel (e de que há uma interpretação razoável do Julio Iglesias) seja, quanto a mim, poesia da melhor.

Há alturas em que me sinto, como disse Discepolín, na pele do otário que um dia, cansado, se pôs a ladrar. Alturas em que me apetece mesmo uivar.

Comments

  1. Luis Moreira says:

    Leiam o poema e verão que a música sai naturalmente, mas não ouvir antes o vídeo ,só depois…

  2. Carlos Loures says:

    O melhor será ouvir antes e depois. É muito bom. Discépolo (Discepolín, como era conhecido, viu textos dele musicados pelo grande Piazzolla).

  3. maria monteiro says:

    O necessitado só deixa de ser uma pessoa incómoda na época das obrazinhas de caridade depois… até para o ano porque são novamente precisos estes e outros necessitados
    É mesmo para ouvir antes e depois

  4. Carlos Loures says:

    Isso é verdade, Maria. Mas não é bem a esses casos dos sem-abrigo que me refiro. É às pessoas que têm uma vida normal (se é que tal coisa existe) e, de repente, essa normalidade desaparece – uma falência, um divórcio, a perda do emprego… Pessoas «amigas», inclusivamente algumas que ajudámos, desaparecem, deixam de atender o telefone. A maioria das amizades parecem funcionar na base da conveniência. As pessoas parecem interrogar-se sobre o que podem lucrar com a «amizade», embora todos saibamos que uma verdadeira amizade consiste em dar e em receber sem contabilidade organizada. Nas alturas dfíceis, vemos quem são os verdadeiros amigos e (falo por experiência própria) vemos que são muito poucos. E a esses, aos verdadeiros amigos, há que conservá-los.

  5. Amigo Carlos Loures, o teu post é uma lição. Uma das coisas mais amargas na minha maneira de ser e pensar, é, de facto, a convivção de que os amigos, de uma maneira geral, são amigos de conveniência. Verdadeiros amigos, esses que sofrem com o nosso sofrimento, são muito raros. Há uma história, verdadeira, que ilustra solenemente isto que digo. Se me lembrar e tiver um pouco de tempo, contá-la-ei um dia destes.

  6. Luis Moreira says:

    Pessoas que caem na miséria deixam de ter amigos e pessoas que enriquecem, sem explicação, fogem deles…

  7. Carlos Loures says:

    Luís, isso que dizes é verdade e, no fundo, refelctem o mesmo tipo de atitude perante duas situações diferentes – quem é pobre, ou empobreceu, não merece ter amigos; quem é rico não precisa de amigos, pois pode comprar companhia. A palavra que define estes comportamentos é a mesma – egoísmo. Adão, ficamos à espera da tal história.

    • Ricardo Santos Pinto says:

      Se eu ganhasse uns 10 milhões de euros no EuroMilhões, deixava todos os meus amigos ricos. Senão, de que me valia ter tanto dinheiro se os meus amigos não me podiam acompanhar? (amigos a sério, claro, não mais do que meia dúzia).

  8. carla romualdo says:

    Há um velho blues (acho que quem o popularizou foi a Bessie Smith mas o Eric Clapton tem uma versão muito conhecida) com uma “mensagem” muito semelhante a este, chama-se “Nobody knows you when you’re down and out”.
    Não conhecia esta canção do meu primo Gardel (o primeiro apelido dele era Romuald…), mas ouço-o sempre com gosto.
    Quanto à amizade, acho que encontrar as pessoas que buscamos e saber construir e manter essa amizade é das coisas mais difíceis deste mundo.

    • Ricardo Santos Pinto says:

      Cada vez me parece mais que, aos 40 anos, as amizades estão feitas. É muito diícil fazer novas amizades a sério depois disso.

  9. Carlos Loures says:

    A amizade é um valor de uma grande magnitude. Felizmente, com uma ou outra desilusão, conservo um grupo de amigos há dezenas de anos. Não me posso queixar.

  10. Carlos Loures says:

    É verdade, Ricardo, se os nossos amigos sofrem ou estão tristes, como podemos nós sentir alegria? E, sem ser uma regra absoluta, as grandes amizades são as que se fazem na juventude e só terminam… quando se sabe. Há excepções, mas são raras.

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