Memória descritiva: há 25 anos a Democracia voltou ao Brasil

No plano da história recente, usa-se no Brasil o termo «redemocratização» para definir um processo de restauração da democracia, após um período de ditadura. Aplicado à história de Portugal, diríamos que a mais recente redemocratização portuguesa se deu com a Revolução de 25 de Abril de 1974. Houve uma outra, quando da ditadura sidonista, entre Dezembro de 1917 e Dezembro de 1918. Porém, o termo não foi aqui utilizado. O dia 15 de Janeiro de 1985, faz hoje 25 anos, marca o mais recente regresso do Brasil á ordem constitucional. Uma redemocratização.

Houvera já a redemocratização de 1945, quando foi derrubada a ditadura de Getúlio Vargas (o chamado Estado Novo), no poder desde 1937. Em 1964, movimentações de unidades militares em 31 de Março, culminaram no dia 1 de Abril num golpe de Estado que pôs termo ao governo democrático de João Goulart, «Jango», como familiarmente os brasileiros o tratavam. Fora eleito vice-presidente pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) , quando Jânio Quadros foi eleito presidente pela União Democrática Nacional (UDN).

Tendo Jânio Quadros renunciado ao mandato no próprio ano em que fora empossado (1961), João Goulart assumiu a Presidência, de acordo com o quadro constitucional em vigor. Quando da renúncia de Quadros, Goulart encontrava-se em visita de Estado à China, o que permitiu aos adversários impedir a sua nomeação automática como presidente da República, acusando-o de ser comunista. A Constituição brasileira, aprovada em 1946, impedia o acesso de comunistas à cadeira presidencial.

Uma longa ronda de negociações, em que Leonel Brizola (cunhado de Jango) teve um papel preponderante, possibilitaram que acabasse por ser aceite como presidente. Em 1963, um plebiscito determinou o regresso ao regime presidencialista e, mercê dessa nova moldura jurídico-institucional, Goulart pôde enfim assumir o cargo com amplos poderes.

As coisas complicaram-se quando militares de baixa patente, sobretudo da Marinha e da Aeronáutica, manifestaram publicamente o seu apoio ao que a direita considerava o resvalamento de João Goulart para posições e medidas esquerdistas ou esquerdizantes. Dizia-se que estaria prestes a desencadear um golpe antidemocrático para impor um governo radical de esquerda; outros falavam na perspectiva de uma ditadura inspirada no justicialismo ou peronismo da Argentina, levando a que as classes possidentes e os políticos mais conservadores se sentissem ameaçados.

Com estes fantasmas agitados ante os sectores conservadores, a Igreja Católica e os militares de alta patente criaram um cenário perfeito e o clima propício para aquilo que a Direita considerou não um golpe, mas o impedimento de um golpe. O governo militar autodesignou-se «Revolução de 31 de Março de 1964», com o objectivo «revolucionário» de acabar com a subversão e a corrupção, mantendo, a princípio as eleições presidenciais marcadas para 3 de Outubro de 1965, porém sem a presença de candidatos da extrema esquerda.

Assim, no dia 2 de Abril de 1964, o presidente do Congresso Nacional, declarou vagos os cargos de presidente e de vice-presidente. João Goulart, ante as movimentações militares de 31 de Março, apoiadas por governadores estaduais, refugiara-se no Uruguai. O general Mourão Filho, líder do golpe militar, afirmou que João Goulart fora afastado por abuso do poder. Os militares iriam defender a Constituição, acrescentou. E, a princípio, mantiveram os 13 partidos políticos existentes e o Congresso Nacional em funcionamento. Cassaram os direitos políticos dos políticos de esquerda, mas tentaram encostar-se aos partidos políticos para garantir apoio no Congresso.

O general Costa e Silva, que aderira à última hora ao golpe, assumiu o ministério da Guerra. A sua influência foi aumentando até se tornar o rosto da linha dura do Exército. Foi o segundo presidente da República do regime, seguindo-se a João Baptista Figueiredo.

Exceptuando Costa e Silva e outros militares legalistas, a grande maioria dos militares golpistas, tinham vindo do «tenentismo» (nome dado ao movimento político-militar de jovens oficiais de baixa e média patente do Exército que, no início da década de 1920, se tinham manifestado descontentes com a situação política. Não declaravam qualquer ideologia, propondo reformas na estrutura de poder – a instituição do voto secreto e a reforma na educação pública, por exemplo), havendo participado na Revolução de 1930. Homens como Castelo Branco, Médici e Geisel que chegaram à presidência da República.
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O Brasil era (e é) um país muito rico em recursos naturais, mas sofrendo de problemas de natureza estrutural, de assimetrias sociais das mais gritantes do mundo (multimilionários a conviverem, paredes meias, com famélicos e deserdados) herança de décadas anteriores a Jânio e a Goulart, e governá-lo, sobretudo em regime democrático, tornava-se tarefa de contornos tremendistas, com interferências internas e de potências estrangeiras.

A desestabilização era inevitável, facilitando o papel dos golpistas. Os militares, sem resolverem qualquer dos problemas endémicos que os seus apaniguados haviam invocado para interromper o normal funcionamento as instituições democráticas, impuseram um regime autoritário, subsidiário dos interesses económicos e da diplomacia internacional dos Estados Unidos. O Tio Sam está sempre presente.

Chamou-se também redemocratização a uma farsa encenada ainda sob o governo do general João Baptista Figueiredo, amnistiando gente acusada de crimes políticos. A chamada linha dura, que edificara uma estrutura de poder baseada nos condimentos habituais – censura aos meios de comunicação, proibição do exercício dos mais elementares direitos de cidadania, polícia política, tortura, assassínios, não deixou que esta «redemocratização» fosse minimamente autêntica.

15 de Janeiro de 1985 é uma data que marca a extinção formal do regime militar, elegendo Tancredo Neves como o primeiro presidente civil desde a eleição de Jânio Quadros em 1960. Contudo, desde Dezembro de 1979, pressionado interna e internacionalmente, o governo militar começara um processo de abertura, restabelecendo, ainda que cautelosamente, o pluripartidarismo, pois desde a governação do general Ernesto Geisel (1974-1979), a crise económica e a impopularidade debilitaram o regime militar. Havia que proceder a reformas ou, talvez melhor, a um exercício de maquilhagem, semelhante ao que Marcelo Caetano tentou em Portugal quando, em 1968 sucedeu a Salazar. Geisel prometeu uma «distensão lenta, gradual e segura».

A ARENA, a Aliança Renovadora Nacional, foi criado com a intenção de dar sustentabilidade política ao governo militar saído do golpe militar de 1964. Fundada em 1966, era um movimento predominantemente conservador. A criação da ARENA foi a resposta aos actos institucionais que, em 1965, determinaram a extinção do pluripartidarismo e dos 13 partidos políticos então existentes.

Na tal operação de maquilhagem, a ARENA transmutou-se no Partido Democrático Social e o Movimento Democrático Brasileiro, obteve o estatuto de partido, passando a PMDM. Outros partidos forma sendo criados – o PT – Partido dos Trabalhadores, o PP – Partido Popular, o PTB – Partido Trabalhista Brasileiro… O Partido Comunista do Brasil, bem como outras organizações de esquerda, continuaram a funcionar clandestinamente. 1980 e 1981 desmascararam o carácter meramente cosmético das reformas: diversos dirigentes partidários foram presos, incluindo Lula da Silva, presidente do recém-formado PT.

No entanto, a crise económica acelerou o fortalecimento das organizações de classe, nomeadamente dos sindicatos. Foi neste quadro de convulsão social e política que, em 1984 o País em peso exigiu a realização imediata de eleições, a campanha «Directas, já!».

Em 15 de Janeiro de 1985 Tancredo Neves foi eleito presidente do Brasil pelo voto indirecto de um colégio eleitoral, mas adoeceu gravemente em 14 de Março de 1985, véspera da posse, morrendo sem ter sido oficialmente empossado. O verdadeiro motivo da sua morte continua por explicar. Foi substituído por José Sarney, vice-presidente eleito. É um político e também um escritor. Trigésimo primeiro presidente do Brasil, governou de 1985 a 1990. É o actual presidente do Senado Federal.

A Democracia, com todos os seus méritos e com todas as suas imperfeições, regressara formalmente ao Brasil. O episódio do golpe militar do dia das mentiras de 1964 passara a ser matéria para estudo dos historiadores. Hoje, vinte e cinco anos depois da redemocratização brasileira, achei por bem recordá-la.

Comments

  1. Belo trabalho, Carlos! Continua a ser para mim um mistério a tua sabedoria e a tua bagagem.

  2. Carlos Loures says:

    Obrigado, Adão. A sabedoria é pouca; a bagagem é aquela que os anos foram acumulando. Fruto do exercício da profissão, que me obrigou a ler, a avaliar (e às vezes a escrever para tapar um buraco…) textos sobre as mais variadas matérias. Assim, fui deitando para as malas, para a tal bagagem, coisas que às vezes nem sabia saber. E (graças ao tintol) uma boa memória, daquelas anteriores ao advento destas próteses da memória e do conhecimento a que chamamos computadores. E, também, alguns cadernos de capa negra (da Ambar) cheios de apontamentos que vou tomando porque «um dia podem ser úteis». E às vezes são. Como vês, não há milagres.

  3. A Constituição de 1946 Brazileira deu direitos políticos aos comunistas e seu partido, o PCB.
    Uma lei de exceção de 1947, motivada pela Guerra Fria, cassou militantes, mandatos e partido.

  4. Carlos Loures says:

    Obrigado, Alien in White, pelos seus esclarecimentos. Como compreenderá, um trabalho desta natureza, não é exaustivo – sobre este apaixonante tema, poderiam escrever-se centenas ou mesmo milhares de páginas. E, provavelmente, continuaria a não se dizer tudo.

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