Memória descritiva: Thunder

A 12 de Novembro de 1975,estando o Parlamento cercado por operários da construção civil em greve, alguns manifestantes chamaram fascista ao primeiro-ministro, o almirante Pinheiro de Azevedo. A resposta não se fez esperar: “Bardamerda para o fascista!”. Nos meios de esquerda (e não só), o almirante passou a ser conhecido pelo «Bardamerda». No vídeo acima, vemos e ouvimos a entrevista que o almirante deu aos jornalistas quando saiu do sequestro. Infelizmente, não consegui encontrar vídeo do momento da famosa resposta.

Muito antes de existir a cadeia de supermercados Pão de Açúcar, havia (e creio ainda que há) um café com este nome na Alameda D. Afonso Henriques na esquina com a Av. Almirante Reis, do lado esquerdo de quem vai na direcção do Areeiro. Aí, na segunda metade da década de cinquenta, se reunia uma tertúlia constituída na sua maior parte por estudantes. Fiz parte dela – aliás, vivia uma grande parte do dia em cafés – lia (muito), estudava (o menos possível) e, sobretudo, conversava, no café.

Numa altura em que era, vagamente, estudante e, ainda mais vagamente trabalhador, nessa tão conveniente terra de ninguém da existência, em dias de ociosidade total, passava a manhã no «Chiado», a tarde no «Chave d’Ouro» e a noite no «Pão de Açúcar» ou, em alternativa, no «Ribatejano» (nos Anjos) e para jogar xadrez no «Continental», da Praça do Chile – uma agenda completamente preenchida, como se vê.

As pessoas com quem me encontrava eram diferentes em todos estes locais. Interesses diferentes, gostos diferentes, tertúlias diferentes. Depois, a partir de 1958, concentrei-me no »Gelo» e passei a ir apenas de visita aos meus antigos poisos. Em missão de soberania, pode dizer-se, para não perder o estatuto de tertuliano (ou tertulianista) em cada um daqueles locais.

No «Pão de Açúcar» a tertúlia era de gente quase toda muito nova, apenas um dos membros era uns anos mais velho (já licenciado e professor, veio depois do 25 de Abril a ser Governador de um distrito, creio que pelo PS). Falava-se, sobretudo, de garotas e, às vezes, comentava-se livros ou filmes. Um dos membros do grupo, hoje um ilustre advogado, tinha na altura a mania de corrigir o português a toda a gente. Uma versão ambulante, avant la lêtre e reduzida (pois é muito baixito) do acordo ortográfico.

Corrigia, inclusive, o mais velho, o professor, que dava (a ele também), gratuitamente, explicações de latim aos necessitados de tal saber. Como um Smart com buzina de camião TIR, o nosso amigo tinha e felizmente tem, uma voz estentórea. Usava (e usa, embora agora com um corte civilizado) uma barba grande e descuidada. Alguém lhe pôs a alcunha de Thunder, pela razão que se adivinha. Thunder, bom rapaz, era um verdadeiro tormento:

«Não se diz “à última da hora”, basta dizer “à última hora”; dizer «outra alternativa é» está errado, basta dizer «a alternativa é», não é «ciclo vicioso, é círculo vicioso»… Havia dias em que não se podia aturar. O que é certo é que o Thunder raramente não tinha razão. Uma noite, por qualquer motivo de que não me lembro, um de nós mandou outro «bardamerda» e a coisa estava feia, à beira do confronto físico, quando o Thunder salta da sua cadeira e corrige com a sua voz possante: « Alto! Não se diz bardamerda, diz-se berdamerda».

Banzados, os dois que se estavam a pegar esqueceram-se da zanga e sentaram-se. Todos escutámos atentamente as razões do Thunder: primeiro, disse que se tratava de um «chulismo» e nós ficámos na mesma – sinónimo de «palavrão», «asneira», explicou. Quase todos fizeram perguntas. Esclarecidas as dúvidas voltou-se à berdamerda:

Explicou que o termo se aplicava a um gajo sem valor, a um zé-ninguém – desses se dizia serem uns berdamerdas. Mas também se podia usar como interjeição – «Ora, vai berdamerda!», exemplificou, o que ia dando para os dois continuarem a discussão onde tinham parado. Aceitámos a explicação do Thunder, mas um rapaz que andava no Técnico, objectou: «Eu cá vou continuar a dizer bardamerda». Democraticamente, a forma incorrecta, popular, talvez, do chulismo, prevaleceu. Um dos presentes resmungou: «tanta conversa por causa de uma coisa destas… ora, bardamerda!».

E ficámos por ali.

Chegado a casa fui ao único dicionário que na altura tinha (e que conservo) o da Porto Editora, de J. Almeida Costa e A, Sampaio e Melo, e procurei – nada. Nem bardamerda, nem berdamerda. Chulismo, sim, mas numa acepção um pouco diferente – «próprio de quem tem modos chulos»… Fiquei convencido de que, por vezes, o Thunder inventava coisas, falsas erudições, só para nos poder corrigir.

E procurei noutros dicionários que fui comprando, ao longo dos tempos, alguns de grandes conteúdos. Até hoje. Ao confirmar, para um trabalho chato que estou a fazer, uma acepção de «berchémia» ou «berchemia», nem queria acreditar, o dedo deteve-se primeiro, os olhos logo a seguir e ao cérebro chegou o milagre: ali estava a entrada «berdamerda» e até explicava que se tratava de um «tabuísmo» cuja forma popular é «bardamerda»., um tab. pop – tabuísmo popular, vi no quadro de abreviaturas. Até aprendi uma expressão nova – tabuísmo = tabu+ismo. O Thunder estava certo. Quem se enganou foi o almirante Pinheiro de Azevedo, quando lhe chamaram fascista…

Já é noite avançada, devia ter-me ido deitar mas vim escrever este texto, partilhando convosco este sentimento de estar tardiamente a fazer justiça ao saber de um amigo. Porque a justiça nunca se deve deixar para o dia seguinte.

Thunder, para que conste: – és o maior!

Já agora: o dicionário que, cinco décadas depois, vem fazer justiça ao Thunder, é o do Antônio Houaiss.

Comments

  1. maria monteiro says:

    Bem, o café Pão de Açúcar ainda existe…meu local de abastecimento de bolos de gema que fazem parte da minha lista para acompanhar o chá.

    No dia 25 de Abril de 1974 escrevi um poema que foi endereçado ao MFA …. passado pouco tempo recebi uma carta do Chefe do Estado-Maior da Armada com um cartão do Vice-Almirante JP Pinheiro de Azevedo a agradecer. Ainda bem que «bardamerda» é a forma popular…

  2. Carlos Loures says:

    Pinheiro de Azevedo, «militar» na acepção mais vulgar do termo, talvez um pouco boçal, tinha qualidades – foi o único governante a que ouvi denunciar o escândalo da ocupação espanhola da nossa Olivença (ele tinha mesmo um plano militar para recuperar o território roubado). E era frontal. Pode não se concordar com o que dizia, era conservador, mas pareceu-me um homem sério, sem as habilidades dos políticos de carreira. Há um livro muito interessante de sua autoria – «O 25 de Novembro sem Máscara».

  3. Carlos Loures says:

    Maria, já agora, uma pergunta: já publicou esse poema no Aventar?

  4. maria monteiro says:

    Não Carlos. Faz parte do passado…

  5. Carlos Loures says:

    O que eu tenho tentado fazer aqui no Aventar é, precisamente, incorporar o passado no presente. Sem passado, o presente não faz sentido e, sobretudo, torna-se mais difícil enfrentar o futuro. Devia dar-nos a conhecer esse poema.

  6. Que berdamerda seria se te tivesses ido deitar e nos fizesses perder este texto.

  7. Pisca says:

    Pinheiro de Azevedo tinha uma pequeno defeito, encantava-se com quem estivesse perto dele, daí acabar por “largar pela boca fora” coisas quase sem pensar.

    Sei dele dois casos bem ilustrativos:

    Nos principios de Maio de 1974, uma delegação do Arsenal do Alfeite foi por ele recebida, depois de uma troca de palavras, sempre cuidadosas por parte dos Trabalhadores do Arsenal, os mesmos acabariam por ficar de boca aberta, quando o Pinheiro de Azevedo lhes diz mais ou menos isto (não sei as palavras certas, mas fica o conceito):

    “- Meus caros, isto só lá vai com a tomada do poder pelos trabalhadores, o resto é conversa”

    Mais tarde a meio de 1975, numa reunião do MFA na Escola Naval, teria ficado assente entre os componentes da mesa que ninguém abordaria o assunto de Angola, dado ser por demais delicado à altura.
    O Almirante, depois de ouvir e ouvir, ao retirar-se para outro compromisso, resolve falar e larga mais esta perola:
    ” – Ninguem falou aqui do assunto de Angola, por mim é simples, entrega-se o poder ao MPLA e está o assunto arrumado, boa tarde meus senhores”

    Ficou tudo a olhar uns para os outros

    Passados meses, mudaram as companhias e foi o que se viu

  8. Carlos Loures says:

    Obrigado, amigos, pelos vossos comentários. É como diz, Pisca, Pinheiro de Azevedo tinha esse «pequeno» defeito de ser muito influenciável e o meu discreto elogio não o faço ao líder do VI Governo Provisório, que foi bastante ineficaz, mas à pessoa, ao homem – frontal e sem papas na língua. O seu comentário alarga o horizonte do meu texto – uma simples história – e agradeço-lho.

  9. Nuno Castelo-Branco says:

    Carlos, hoje em dia, já não existem tertúlias dessas. Hoje só falam de Cristianos Ronaldos, dinheiros de transferências e … mais nada.

    E eu que desde sempre digo bardamerda!

    Quanto ao Pão d’Açúcar, conheço-o bem. Quando cheguei a Lisboa (1974), a minha escola foi a António Arroio e a saída do metro era exactamente em frente desse café, onde cheguei a comer dois ou três bolos. Na altura, não havia dinheiro para fantasias.

  10. Pisca says:

    Curioso que tinha ideia que o “Pão de Açucar” era uma mercearia na Praça de Londres, estou enganado decerto.

    Tanto quanto me contaram, quando o Grupo Pão de Açucar se quis instalar em Portugal, teve que pagar e bem para o uso do nome, já que o mesmo seria propriedade da Pastelaria, acabando mesmo por se designar oficialmente por SUPA-Companhia Portuguesa de Supermercados, sem incluir a designação que tinha no Brasil

  11. Carlos Loures says:

    O «Pão de Açúcar» de que estou a falar ficava, parece que continua a existir, na esquina Almirante Reis/Alameda/Guerra Junqueiro. Na altura em que eu o frequentava era um café e pastelaria. Na Praça de Londres, que conheço bem, não me lembro de nenhuma mercearia com esse nome. Mas estamos a invadir a zona do Luís Moreira.

  12. Miguel Dias says:

    meus caros, à altura tinha 6 anos portanto não posso opinar com conhecimento de facto acerca do personagem.
    mas desde sempre gostei destas pérolas. o gajo porreiro que não tinha papas na língua e falava como se tivesse a beber uns copos com os amigos.
    é pá não gosto de ser sequestrado, é uma coisa que me chateia.
    ontem à tarde. ora bem ontem à tarde. não estou a ver….a ironia fina com o costa gomes e as suas intermináveis reuniões.
    o pá desculpem lá, mas agora tenho ir almoçar.

    já viram o que era isto hoje dito por um primeiro ministro?
    o homem ainda é vivo?

    • Luís Moreira says:

      Não, morreu a dizer que lhe tinham posto “alguma coisa no wiskye…” acho que com um ataque cardíaco…

  13. maria monteiro says:

    Carlos, foi simplesmente isto:

    25 Abril 1974 (25/4/1974)
    é vitória do povo
    é a raça portuguesa
    que ao unir-se se eleva
    que nos dias concretiza
    a igualdade que não é sonho
    a justiça de que precisa
    a liberdade onde põe
    o corpo das gentes
    que não sofreram indiferentes
    que souberam esperar
    e construir
    que souberam precisar
    o momento de agir.

    É vitória sem cores, sem opressão.
    É vitória para que de novo, haja paz sem ilusão.

    Honra aos homens que souberam comandar
    Honra ao dia, à hora … Viva Portugal que renasce agora

  14. Carlos Loures says:

    Muito obrigado Maria, por ter partilhado connosco essa emoção tão grande que transparece das suas palavras. É um poema bonito, escorreito, que não tem que esconder e do qual nada tem que se envergonhar. Parabéns. Espero vê-lo no próximo dia 25 de Abril no Aventar. Pois é Miguel, o almirante morreu como o Luís conta. De facto, hoje já não há gente como esta na política. Imperam a hipocrisia, as falinhas mansas, o veneno escondido nas entrelinhas… São outros tempos.

  15. José João Roseira says:

    Lembro-me muito bem deste episódio e desta entrevista onde falta esse importantíssimo pormenor. E ia jurar que a expressão usada, quando perguntaram ao almirante, o que tinha a dizer ao facto de lhe terem chamado fascista, foi: “Fascista? Eu? Vão bardamerda!”
    Não sei por que raio, pegou o “Bardamerda pró fascista” que me parece não ter pés nem cabeça.
    Talvez me decida a pedir ao arquivo da RTP. Não sei se valerá a pena gastar algumas dezenas de euros porque nem sequer estará na minha mão fazer desaparecer essa maldita expressão.
    Espero não estar enganado mas se estiver que alguém me desminta com o vídeo.

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