Brincar às ciências

Cela de Afonso VI em Sintra, onde foi encarcerado por seu irmão e cunhado

No jornal I (versão reduzida no Ionline) Joana Amaral Dias entreteve-se a exercer a sua profissão com gente que não conheceu viva, e que em pelo menos um caso desconhece enquanto morta.

A História, que é uma ciência, vive também do contributo de todas as outras ciências, mas pedem-se trabalhos sérios, e que obedeçam aos mínimos de rigor científico. Muitos médicos, por exemplo, tentaram diagnosticar doenças dos nossos monarcas e não só, algumas vezes com uma probabilidade muito razoável de certeza.

No caso que mais me interessa não vou discutir se Afonso VI era ou não psicopata.  Discuto sim que os médicos da época lhe diagnosticaram um “imódico uso de Vénus” não por serem médicos mas por pressão política, que Afonso VI foi vítima de um dos mais escabrosos processos da História de Portugal, onde a mãe de um filho que provavelmente teve negou tal paternidade sob as pressões do costume, tudo às ordens de Versailles, que era quem cá mandava à época.

Afonso VI tinha um uso tão imódico de Vénus que pouco tempo depois de a sua esposa contratada cá ter chegado escreveu que dentro em breve esperava dar um herdeiro à coroa, e duvido que a senhora acreditasse em métodos in vitro, já que a despeito de ter sido uma das mais pérfidas personagens que ocuparam o cargo de rainha em Portugal de parva não tinha nada.

Eu sei que a historiografia continua a desprezar Afonso VI, circulando as versões romanceadas e uma curiosa opção metodológica por não lhe dar importância nenhuma, vinda de academias muito dadas à Teoria do Estado e desinteressadas da boa e nova biografia.

A mim interessa-me porque se outra razão não tivesse para demonstrar a falência da monarquia a triste existência de mais este rei à força, com a felicidade de ter um bom primeiro-ministro e o azar dos jogos entre as potências europeias lhe terem ditado má sorte, Afonso VI chegava-me, e em ano de centenário prometo desenvolver o assunto.

Um  colega e amigo, arqueólogo, dos que primeiro apanharam com a versão educacional das nossas licenciaturas, narrou-me a experiência com este remate final:

– O problema é que os gajos pensam que a Psicologia já é uma ciência, e ainda por cima são arrogantes.

Vinte e tal anos depois o problema ainda é o mesmo.

Comments

  1. Luis Moreira says:

    Eu acho que a Joana não se devia levar tão a sério…

  2. A situação era um tanto ou quanto desgraçada. Ele era o sucessor, após a morte do irmão Teodósio. Contudo, a opinião geral – aliás as Cortes teriam de confirmar a sucessão -, era a passagem da coroa para o irmão D. Pedro. Contudo, há que atender a vários factores:
    1. Apesar das lendas tecidas quanto à hereditariedade, neste caso não se colocava prementemente. A verdade é que as gravidezes eram muito problemáticas e os partos ainda mais. Sem recursos médico-científicos, os nascimentos sãos eram encarados como quase-milagres, dadas as dificuldades naturais. A taxa de mortalidade infantil era gigantesca, imoral para os nossos actuais parâmetros.

    2. A situação política.
    Saídos da união ibérica, a política de alianças era problemática. A Inglaterra vivia em plena convulsão saída da guerra civil e o regime puritano de Cromwell não oferecia total confiança. A França, a inimiga da Espanha, era a força terrestre de recurso, com quem devíamos estabelecer laços. Estávamos em guerra aberta com a Holanda, talvez o mais mortal e persistente inimigo que já enfrentámos (durante séculos). A chegada da inteligente Maria Francisca Isabel – prima direita de Luís XIV – a Lisboa, marcou uma época. Se por um lado garantiu um certo apoio técnico nas necessárias campanhas militares, por outro introduziu a decisiva e já secular influência cultural francesa no nosso país. Infelizmente, dada a total falta de sentido prático e em estranha contraposição ao pragmatismo que a aliança inglesa pressuporia.

    3. Correm muitas versões acerca das capacidades físicas do rei. Algumas davam-no como impotente, o que até não seria estranho, dadas as condicionantes físicas. No entanto, há que ter em atenção o interesse político dos seus opositores, ou melhor dizendo, dos inimigos do bom 1º ministro Castelo-Melhor.
    Falava-se também e de forma aberta, do cariz das relações que mantinha com os irmãos Conti, conhecidos “corredores” de prostitutas de Lisboa. pelo que e dizia, o rei participava alegremente nos folguedos. O enigma consiste afinal, na total falta de certezas.

    4. Porque não foi Afonso preterido antes da chegada ao trono? Talvez a questão da Guerra da Restauração tenha sido decisiva. A legitimidade da Casa de Bragança ainda podia ser contestada, como era pela generalidade das potências católicas, subordinadas à Espanha e ao Império dos Habsburgos no centro da Europa. Existindo o infante D. Pedro e a irmã, a rainha da Inglaterra, a sucessão parecia assegurada, pelo menos provisoriamente. Há que atender ainda ao aspecto quase republicano-nobiliárquico do regime saído de 1640, muito dependente da força dos seus promotores: exército, funcionalismo público, ultramar, sistema jurídico, estavam dependentes desses funcionários que foram – quase à imagem do que se passava nas repúblicas italianas – o sustentáculo da Independência. Aliás, uniram-se em torno do infante em 1666.

    Creio que a normal sucessão se deveu à questão da guerra. Na época, a legitimidade era um factor primordial e assim, Afonso acedeu normalmente à coroa, embora o seu poder fosse praticamente delegado nas competentes mãos de Castelo-Melhor. Além do mais, a manutenção do sistema de Cortes garantia o ordenamento constitucional tradicional e a evolução para o chamado absolutismo – termo que há que escalpelizar -, seguiu a influência francesa que Maria Francisca Isabel trouxe para Lisboa.

    Apesar de tudo, o cognome O Vitorioso, deve-se sobretudo, ao resumo militar do seu reinado. No seu corpo, O Vitorioso foi Portugal. E isso é o que mais interessa, pois ainda existimos. Por enquanto…

  3. Deixando a outra questão para outro dia, Afonso não foi preterido pela simples razão de que era, e foi, manipulável. A forma como assumiu o poder, pressionado a correr com a mãe, não me deixa grandes dúvidas.
    A ironia está em a facção da nobreza que o conduziu ao trono ter do governo ideias bem avançadas, experimentando-se algumas medidas mercantilistas no seu curto reinado.
    Coisa que a velha nobreza não estava disposta a admitir, e no reinado de Pedro II voltámos ao atraso normal das cousas. O costume.

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