Os números da vida

O processo de envelhecimento, contínuo, inexorável, acompanha-nos a partir do fim do crescimento. Não damos logo por ele pois, durante um bom tempo, encaramo-lo como amadurecimento, onde vamos arquivando aquilo a que chamamos de “marcas do tempo”.

Pela frieza dos números da lapidar estatística, ultrapassei metade da minha esperança de vida. Já gastei metade do tempo que, previsivelmente, irei viver. E a verdade é que não dei por isso. Sem embargo das muitas coisas que vivi, e já foram algumas, não sabe a metade. Longe disso.

É um pouco estranho, esta consciência matemática que sou já um homem de meia-idade, com metade da vida previsível já vivida.

Não bate certo com o que faço, com o que eu sinto e muito menos com que eu vejo, principalmente ao espelho. Felizmente.

Só que são esses os números.

Nem bate certo com o que espera de mim a família, os amigos, ou a sociedade.

Saber viver a previsível metade que resta, e até desejar direito a um bónus de prolongamento, se o Grande Árbitro assim o entender (peço desculpa pelo pecaminoso acto de envolver o Criador na linguagem do futebol) é o grande desafio, que muitas vezes se ignora porque se está ocupado com outras coisas, com outros números.

Esse saber viver descobre-se. E a descoberta é algo bem mais rico do que a aprendizagem. Bem mais marcante.

Pode-se ouvir e avaliar experiências, exemplos e erros dos outros, e com isso ganhar referências, paradigmas. Mas o que parece marcar mais fundo não se aprende: descobre-se. Até porque cada vida é única. Daí ter tanto significado partilhá-la com os outros: com a família, com os amigos, com a sociedade. E ao partilhá-la, vivê-la, como única que é.

Espero ser capaz de viver a previsível metade que me resta com respeito por essa unicidade e, principalmente, quero ser capaz de saber partilhá-la.

Aqui entrariam aquelas coisas que aprendemos a partir do início do envelhecimento, e que constituem parte da chamada linguagem de adulto, como “prioridades” e “objectivos”. Só que eu não quero ser tão adulto. Quero antes guiar-me pela “vontade”, pelos “gostos” e pelos “afectos”. Porque é isto que dá lastro à vida, corpo aos momentos, e raízes às memórias.

O tempo o dirá, com os seus anos, e os seus números.

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