Homenagem a João Camossa

De João Camossa, recordo a figura inconfundível “à Rasputine” do intencional desleixado que participava pelo PPM nas cimeiras da AD. Ao lado dos senhores doutores do PSD e CDS, este verdadeiro erudito doutor com uma impressionante história e currículo de activismo político, sempre foi presença incómoda.

É bem certo ainda existir um profundo e bem enraizado preconceito pelos monárquicos em geral. Minados por aqueles que assim se consideravam – os rotativos Progressistas e Regeneradores de há mais de um século -, achincalhados pelos improváveis republicanos sem conteúdo que justificasse a pertença ao ideal e quando impossíveis de manipular, perseguidos e ostracizados pela 2ª República, foram durante muito tempo relegados para o baú das curiosidades. Hoje a situação é bem diversa e se assim acontece, João Camossa consistiu numa primeira referência de coragem, sageza e perseverança. Com graça e antecipado sabor revanchista, dizia-nos que …“agora que já não se podem esconder atrás de barretes, vão ver o que os espera dentro de uns… huuuuuuum… trinta anos. Bem gostava de poder assistir, ahahahahaha!”

Durante décadas foi conhecido activista opositor à 2ª República, tendo participado activamente em episódios como a Revolta da Sé (1961) e o Golpe de Beja (1961), o que lhe valeu a estadia no conhecido Aljube. Membro do grupo fundador do Centro Nacional de Cultura – excelente e legal pretexto para o activismo e formação política -, participou no grupo de Gonçalo Ribeiro Telles, Francisco Sousa Tavares, Rodrigo Sousa Félix e Fernando Amado, marcando aquele vital momento de ruptura com os resquícios de uma Causa Monárquica que vivia na expectativa do final cumprimento de longínquas promessas do regime vigente. Durante o julgamento dos implicados no Golpe de Beja, foi contra a estratégia dos outros advogados da defesa que procuravam argumentar com a formalidade dos princípios democráticos da Constituição de 1933. Pelo contrário e para estupor do Tribunal, o monárquico assumiu frontalmente a ruptura contra o ordenamento constitucional republicano e corporativo.
Um episódio incontornável da sua biografia política ficou célebre pelo escândalo. Advogado no Tribunal Plenário de Lisboa, um juiz passou-o à condição de réu, dados os termos em que se dirigia à acusação. Obrigando-o a despir a toga, Camossa obedeceu, mostrando-se nu em plena sessão. Previra cuidadosamente os seus actos e as consequências.

Radical, denominava-se de monárquico anarco-comunalista e tenho ainda bem presentes as longas horas de conversa à mesa da Alsaciana ou Cister, os cafés situados nas imediações da antiga sede do PPM, a S. Mamede. Aquele homem de tudo sabia e de muito falava. Biografias inteiras, histórias picarescas de grandes vultos, filosofia e surpreendentemente, um espantoso conhecimento territorial do país que calcorreava a pé, por montes, vales cidades e vilas. Por vezes, tornava-se incompreensível e o seu grandioso argumentativo – a dialéctica de outros -, era susceptível de desesperar os mais pacientes. Quantas vezes não entendia o que queria ele dizer e a minha impaciência fazia subir o tom da discussão, ao ponto de sermos admoestados pela gerência do estabelecimento! E o João Camossa ria, uma vez mais vitorioso.

Num dia de Cimeira da AD marcada para a sede do extinto PPM – o que hoje existe é uma indigna caricatura do original -, ao deparar com a chegada do 1º ministro Balsemão e do ministro Freitas do Amaral, virou-se para os jovens e na sua inconfundível voz de trocista inveterado, sentenciou:

“Meus senhores, chegaram os caixeiros-viajantes. Podemos começar!”

No próximo dia 26 de Janeiro, pelas 18.30H, o Centro Nacional de Cultura promoverá uma sessão de homenagem a João Camossa, um dos seus fundadores. A escassos dias da comemoração oficialista do pequeno mas muito convenientemente empolado  bambúrrio bairrista do 31 de Janeiro, o C.N.C. inicia o ano com esta homenagem a um homem que mais fez pela verdadeira república – a eterna que sempre fomos desde que Portugal assim se chama -, que toda a oligárquica cáfila empresarial tuteladora da política que nos empurra para um evitável abismo.

Estão todos convidados.

Centro Nacional de Cultura

R. António Maria Cardoso 68, Lisboa

Tel. 21 346 67 22

Comments

  1. Luis Moreira says:

    Bela homenagem! É capaz de ser giro ver-me no meio de monarquicos.

  2. Nuno Castelo-Branco says:

    Vai gente de vários quadrantes, como se diz. O chefe da coisa é o Guilherme d’Oliveira Martins, um homem super-da-situação (ah, se o tio-bisavô sonhasse…). Mas o Camossa era uma personagem. Para mais, não te rales. Ainda há pouco tempo, numa conferência que evocava o 1º de Dezembro, o Eduardo Lourenço fez uma homenagem a D. Duarte, como representante do Restaurador e a sala correspondeu, em peso. Estás a ver…?

  3. Carlos Loures says:

    É. Nós, os republicanos, somos tolerantes.

  4. Luis Moreira says:

    Carlos, se o Nuno não fosse monarquico já viste as belas prosas que tínhamos perdido? Temos que ver a coisa sempre pelo lado positivo.

  5. Carlos Loures says:

    Nada disso. Se o Nuno fosse republicano, teria exactamente o mesmo talento e diria coisas ainda mais importantes. Porque ele gasta o talento a falar de folclore. E, para o contradizer, obriga-me também a entrar nessa área tão do gosto do António Ferro. Quando ele não gasta a prosa a atacar a República, é que vê como ele é talentoso. Porque a discussão República vs Monarquia já não faz sentido. A República é um facto que só pode (e deve) ser substituído por algo de mais avançado; nunca por peças de museu.

  6. Carlos Loures says:

    E, a propósito, o grande democrata e intelectual João Camossa é merecedor de todo o meu respeito e admiração. Porque a divisão entre republicanos e monárquicos também deixou de fazer sentido. Como diria o Elio Vittorini, há homens e não-homens, «Uomini e no», «Os homens e os outros», como se chamou em português o seu célebre romance. E isso é que interessa.

  7. Luis Moreira says:

    Tambem se aplica ao Nuno! Mas se estivessemos todos aqui a abanar a cabeça a dizer que sim, eu arranjava uma namorada e não vinha ao Aventar…

  8. Carlos Loures says:

    Claro que aplica. O Nuno é uma pessoa muito estimável e é por isso que eu lhe dou bons conselhos. Não sabia que o Aventar era incompatível com as namoradas.

  9. Nuno Castelo-Branco says:

    Bom, pelo menos o Camossa é aqui recordado e isso é o que vale.
    Carlos, quanto a folclore* à António Ferro, dê uma vista de olhos nas notícias de hoje: quatro anos de Cavaco que vão continuar, tricas e mexericos no PS, enfim, o esgatanhanço do costume. E tudo isto, para quê? Só chega a Belém quem pode e não quem quer. Questões de dinheiro. Tal e qual como no Chile, EUA, França, Rússia, etc, etc, etc.

    Bem, vamos e ao Camossa! mesmo que alguns seja em espírito, dada a distância da residência.

    *Gosto de folclore, principalmente do português, ehehehehe.

  10. Carlos Loures says:

    a) – De acordo. Mas o inverso também é verdade – em Monarquia seria diferente? Não havia esgatanhanço?
    b) – De acordo.
    c) – Que o Nuno gosta de folclore? É do domínio público.

  11. Luis Moreira says:

    O Aventar não é incompatível com as namoradas, é pior! O Aventar está a substitur as namoradas!

  12. Já agora, aqui deixo uma opinião chegada de Sintra:

    “Foi em tudo a antítese da vulgaridade. Inteligente e profundo, muito original-o que não quer dizer que fosse irrealista nem muito menos ingénuo- no modo como via o presente e como preconizava o futuro. Desconcertante, ousado e por vezes genial nas intervenções públicas, escapando a toda e qualquer disciplina, muito anárquico na doutrina, e no modo de vida. Sem embargo, era naturalmente sociável e um bom companheiro. Político à maneira antiga, da política como jogo- entretenimento supremo da existência e como luta pura por ideais, avesso ao poder, que entendia que corrompia. Foi um devotado adepto da Monarquia, cujo ideal serviu fielmente por toda a vida. Associava, no seu ideário, restos de integralismo lusitano ao seu característico anarquismo comunalista e à sua sólida opção democrática, pugnando indefectivelmente pela liberdade e pelos direitos da pessoa humana. Com a ironia permanente à flor da pele, frequentemente sarcástico, céptico em muita coisa, mas amando sempre a sua portugalidade.”

    D. Duarte de Bragança (2007)

    … e a do meu irmão Miguel, no Combustões:

    “João Camossa (1925-2007) era um homem extravagante. Dele se dizia, com o escarninho da malévola estupidez – daquela que olha aos sapatos, à gravata e aos trapos para emitir certificado de respeitabilidade – que parecia um deserdado, um homem da rua, enfiado no seu sobretudo de grossa lã 365 dias por ano, a hirsuta barba amarela queimada pelo tabaco, o monte de papéis e livros de alfarrabista sob o braço. O mundo está cheio de medíocres, de homens e mulheres proclamados normais e gente de bem que nunca acrescentaram um grama à fatalidade da biologia do nascer, do alimentar-se e do morrer. A mediania apagada, ansiosa por fugir à sanção do olhar repressor, desejosa de gregarismo, olha para estes estranhos dissidentes com medo, por neles julgar ver a solidão, a exclusão e a pobreza aterradoras. Para pessoas que se esgotam em jogos sociais, no parece-bem, na moralzinha bem apresentada das palavras [e sobretudo da intolerância], João Camossa era um incómodo.

    Contudo, quem dele se abeirasse e o ouvisse discorrer sobre as suas paixões – a História, a doutrina portuguesa, a tradição, o património literário e o património monumental, a olissipografia – quedava-se mudo, não se atrevendo cortar o fio do raciocínio informado, a profundidade da reflexão, o brilho das metáforas, o provocador das associações que ia entretecendo. Camossa não mandava calar nem levantava a voz, mas as conversas em que participava depressa se transformavam em monólogos.

    Tive a honra de o conhecer em 1982, quando, presidente da JM (Juventude Monárquica) desenvolvi com o meu irmão Nuno, o João Portugal, o André Folque Ferreira e o Eduardo Rosa Silva a primeira grande experiência de activismo monárquico no Portugal pós-25. Ao contrário de muitos dirigentes do PPM, barricados nas inibições que a sua condição de aliados menores da AD aconselhava e ansiosos em agradar aos desertos mentais da tecnocracia iletrada, João Camossa viu naquela centena de rapazes e raparigas de vinte anos a grande esperança do ideal monárquico. Na altura, lembro-me, chamaram-nos tudo e até a processos disciplinares, com audições formais e depoimentos recorreram. O nosso crime ? Falar em monarquia, cobrir as paredes de Lisboa com cartazes monárquicos, exibir a azul-e-branca, vencer sucessivas eleições nos liceus de Lisboa, participar nos comícios da AD com centenas de jovens estridentes que quase deixavam à margem as poderosas JC e JSD. Confesso que cometemos erros, mas esses erros, produto da imaturidade, deviam ter sido interpretados como erros do crescimento e não punidos com a severidade desses castelos de papel que são os estatutos. É a velha tara jurídica das direitas portuguesas !

    Ora, voltando a Camossa, ele era demasiado lúcido para cobrir o que quer que fosse com o manto da poesia. Era um radical pessimista antropológico mas dava-se às pessoas. Lembro-me que desfiava a imensa bagagem literária e escolhia, precisamente, as obras mais sombrias sobre os homens, as suas parvoíces e maldade, as intolerâncias graníticas, as teimosias e crueldade. Um dia trouxe-me Os Vulcões de Lama, o último romance de Camilo e disse: “Miguel, leve-o e sorva-o até à última página”. O homem que se apresentava como Anarco-Miguelista conhecia demasiado a história e os homens para sobre eles esperar grande coisa. Noutra circunstância, Camossa entrou na sede do PPM, então na Rua da Escola Politécnica. Vinha radiante, trazendo na mão o jornal Rex, orgão informativo da Juventude Monárquica. Eu havia escrito o editorial que era, confesso sem remorso, uma chuva de Orgãos de Estaline em palavras. Camossa disse-me: “se vocês pudessem, amanhã teríamos a bandeira hasteada na Praça do Município”. Foram precisos vinte e tal anos para que o sentido da nossa militância fosse compreendida. No fundo, as pessoas não mudam. Eu sou, sem tirar, aquilo que era há vinte anos e tenho a supina alegria de ver que o mundo mudou e que hoje, aquilo de que fomos acusados é moeda corrente. Estávamos, pois, vinte anos adiantados sobre o tempo.”

  13. Luis Moreira says:

    Grandes prosas, Nuno!

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