Memória descritiva: Otelo

Foi numa tarde de sábado do Verão de 1974, dia 13 de Julho, mais precisamente. Em casa do meu compadre Joaquim Reis, na Parede, eu, ele, o Jaime Camecelha, as respectivas mulheres, estávamos à volta de umas cervejas e de uns petiscos que a comadre Lurdes preparara. Excepcionalmente, naquele dia não fôramos a nenhuma manifestação e gozávamos o merecido descanso, após uma semana de trabalho e de luta. As crianças estavam numa sala ao lado com uma merenda adequada.

Na televisão, víamos distraidamente uma cerimónia qualquer transmitida em directo. Demos mais atenção quando vimos que estava ali toda a Junta de Salvação Nacional. O general Jaime Silvério Marques fazia um discurso balofo onde exaltava a juventude de espírito dos membros da Junta de Salvação Nacional, todos eles oficiais generais, chamando a esse ilustre grupo os louros da Revolução de Abril. Nós ríamos e íamos comendo, bebendo e conversando. Era a conversa de xaxa do costume.

Foi então que um jovem major de cabelos precocemente embranquecidos, elevou a voz e perguntou: «-Dá-me licença, meu general?» Silvério Marques apanhado de surpresa disse que sim. Spínola que conhecia bem aquele major de artilharia esboçou um sorriso. Acho que foi o meu compadre quem disse, referindo-se ao major: «- Este gajo parece o Nasser!».E o «nasser» sai-se com esta:

Soubemos depois que aquele acto solene se destinava a graduar em brigadeiro o tal major de cabelos brancos e a nomeá-lo para comandante-adjunto de uma coisa chamada COPCON (que o MRPP dizia ser a nova PIDE). Porém, a partir das palavras do empossado a cerimónia estava estragada.

Os generais estavam furiosos, o monóculo do Spínola lançava chispas, a bonomia desaparecera-lhe das bochechas. Costa Gomes mantinha o seu sorriso discreto e era o único que não parecia muito incomodado. Nós os seis desatámos a bater palmas. «Embrulha!»O Joaquim Reis lançou este modismo, na época muito em voga, dirigido ao Silvério Marques que gaguejava atabalhoadamente as palavras de encerramento do acto.

Nunca mais deixámos de seguir com atenção a carreira deste homem com o qual, passado relativamente pouco tempo travei uma relação de amizade. Tínhamos frequentes reuniões em Lisboa, morávamos ambos na linha de Cascais, éramos quase vizinhos (eu vivia na Parede e ele em Oeiras) e ia até sua casa no meu carro. Alternadamente seguíamos depois no carro de um ou de outro, porque, mais ainda do que agora, os tempos não estavam para despesas inúteis.

Pude ver, durante esse convívio, como Otelo, ao contrário do que se diz, é uma pessoa de grande cultura, gostando de bons livros, de bom cinema, de boa música. Um militar atípico, dir-se-ia mesmo. Mais tarde, tive o prazer de ser seu editor, publicando-lhe numa colecção dirigida pelo António Reis uma edição encadernada do seu «Alvorada em Abril».

Justamente em «Alvorada em Abril», Otelo conta como, no comando clandestino instalado no Quartel da Pontinha, terminada a sua missão se sente desnecessário. É um belo momento literário – a Revolução triunfou após 48 anos de ditadura e o homem que planificou a acção e a controlou até ao fim, acha que a sua missão terminou:

«Retiro da prancheta o meu “mapa de estradas”, recolho a “ordem de operações”. Luís Macedo mandará depois arrumar a sala e Garcia dos Santos providenciará para a recolha dos rádios e telefones. Dou um último olhar pelo compartimento, apago as luzes e fecho a porta. Sou o último a sair.
No quarto de oficiais, dispo a farda e visto-me à paisana. Meto no carro a pasta e o saco de napa com o uniforme e saio a porta de armas da unidade. O velho Morris 1100 rola pela fita da estrada a caminho de casa, num país diferente.»

Otelo Saraiva de Carvalho foi o cérebro da Revolução de Abril, o homem que planificou toda a operação. No terreno, Salgueiro Maia foi o mais brilhante executor dessa «ordem de operações». Sabe-se que o MFA era constituído por muita gente e que todos foram importantes, mas se tivesse de escolher os nomes mais representativos desse grupo de jovens oficiais (jovens de idade e de espírito), Otelo e Salgueiro Maia seriam os eleitos. Sem hesitar.

Comments

  1. maria monteiro says:

    então já somos dois a fazer essa escolha e também sem hesitar

  2. Luis Moreira says:

    Há aí muito romantismo, houve quem teve de controlar o processo com cedências e ganhos que não agradam a todos, mas não menos importantes!

  3. Carlos Loures says:

    Eu sei isso. Todos foram importantes – até mesmo os que falharam as respectivas missões, os que não puderam actuar por estar presos, etc. Mas os dois que refiro, não só foram importantes, como foram decisivos.

  4. Ver no que isto deu é de chorar!

  5. Carlos Loures says:

    Pois é. Mas o próprio MFA, que nos restituiu a Democracia, trazia no seu interior as sementes daquilo que agora temos. A esuerda militar queria um regime socialista – e aqui dividiam-se, os gonçalvistas alinhando pela URSS, os otelistas pelo Poder Popular. Os que defendiam a «estabilização» num sistema moderado, no estilo das democracias ocidentais, prevaleceram. E aí estamos.

  6. Luis Moreira says:

    Carlos, os militares não poderiam optar em nome do povo. Tinham que chegar à democracia, o resto é com o povo e a sua vontade. Bem sei que há as reticências todas…

  7. Carlos Loures says:

    Houve uma coisa chamada «Aliança Povo-MFA» – as comissões de trabalhadores, de moradores, as assembleias de escolas e faculdades 8bem como as de quartel), estavam maioritariamente com o MFA. Em 25 de Novembro esse processo de assembleias populares de base foi abruptamente interrompido e o poder entregue aos partidos políticos com representação parlamentar. Será que isto foi um gesto democrático?

    • Luís Moreira says:

      Democrático no sentido da vontade popular não foi, mas no quadro da democracia parlamentar ocidental…

  8. Carlos Loures says:

    Ora aí está! Foi o que eu disse num dos comentários anteriores. Foi uma opção pela democracia parlamentar ocidental, mas tomada em estilo latino-americano – com as chaimites do Jaime Neves. Bem, agora já estamos os dois a dizer a mesma coisa,

  9. Nuno Castelo-Branco says:

    Carlos, o Otelo foi colega do meu pai no Liceu Salazar, em Lourenço Marques. Por coincidência, a irmã dele foi minha professora (muito boa e eficiente, diga-se) de inglês na Escola Industrial. Era um bocadinho racista para com uma boa parte da turma que era “de cor”. Gostava de exibir os privilégios de “setôra”. Por exemplo, uma coisa que detestávamos era a tal garrafa de água gelada e nós sem podermos beber, naquele calorão infernal das salas de aulas da Escola Industrial (antigo Paço Maçónico onde andou o meu bisavô, o agrimensor da C. Municipal de L.M). A setôra lá sorvia a água fresca e com um estalo de língua olhava para o copo, erguia-o e lá nos dizia: teacher’s privilege!

    Pois… eheheheheh 😛

  10. Carlos Loures says:

    O racismo da irmã não se lhe transmitiu. Posso garantir-lhe que o Otelo não é racista. Como sabe, há características familiares que não são comuns a todos os membros.

    • Luís Moreira says:

      Carlos, o Nuno não disse racismo nesse sentido…até cá, o fascismo tratava diferentemente os de mais baixa condição.

  11. Nuno Castelo-Branco says:

    Ora, Carlos, não me expliquei bem. Não era um racismo violento e muito ostensivo, de forma alguma. Abusava era na troça que incidia sempre nos mais escuros.
    Não gostávamos nada disso, até porque nos dávamos muito bem. Lembro-me do colega Pelembe, a principal vítima. Não era muito inteligente, mas óptimo rapaz, incrivelmente generoso e prestável, mesmo à moçambicana. pois bem… o puto não se safava mesmo nada em inglês e então, pagava. Naquele tempo, os professores eram de outra índole, mais hierarquizantes, sem qualquer dúvida. Hoje tudo é diferente e passou-se ao extremo da desordem. Apesar de tudo, prefiro a qualidade o ensino de então. Pecava muito por não ser total, quero dizer, não abrangia a população inteira. Aqui, o regime cometeu um erro crasso, alienando um apoio precioso. É que nem sequer encontrava paralelo nos seus semelhantes da Alemanha e da Itália pré-1945 ou nos do Leste da Europa. Rigoroso q.b., mas para poucos.
    Que estreiteza de vistas, desperdiçar o único ponto positivo que se podia apontar às ditaduras da Europa.

    • Luís Moreira says:

      Até aqui, no meu tempo, os alunos de mais baixa condição eram pior tratados…

  12. Carlos Loures says:

    Em todo o caso, quando estive no Maputo, ouvi queixas sobre o racismo na época colonial: cinemas onde havia lugares para brancos e outros destinados a negros… Pareceu-me que a sociedade laurentina era influenciada pela África do Sul e pelo apartheid. Mas, apesar disso, acho que gostam de nós.

  13. Carlos Loures says:

    Sim, eu percebi. Mas, segundo me disseram, nas colónias e, neste caso em Moçambique, coinviviam as duas espécies de discriminação – a racial e a social. O fascismo impôs a tal «ordem nova» em que, eliminando o «democrático caos» da I República, o substituiu pelo princípio de que «o respeitinho é uma coisa muito bonita», sobretudo se estamos a falar das relações entre «gente» e maltrapilhos. A Democracia que temos, não avançou tanto como devia (nesse e noutros capítulos).

  14. Nuno Castelo-Branco says:

    Carlos, não sei a que década estavam os queixosos a referir-se. pois digo-lhe, sob PALAVRA DE HONRA que sempre fui com os meus amigos pretos – ou chineses e indianos, por exemplo -ao cinema, praia e escola, para nem sequer falar dos machimbombos (autocarros). Quem disser o contrário, mente descaradamente. Quando o sr. Luther King se manifestava nos EUA dos anos 60, já nada daquilo que ali se vivia, era possível ou visível em L.M. Nem sequer interessava à imagem internacional do regime.

    É claro que isto não quer dizer que a situação de subordinação à Metrópole não fosse desadequada à época. Era. Mas temos ainda que atender a outros colonialismos a que continuamos a tecer loas. Os romanos, com as suas pontes, estradas, banhos, leis, comércio, arte, etc, ou às laranjeiras e noras árabes, por exemplo. A História foi o que foi.

  15. Carlos Loures says:

    Eu acredito plenamente no que me diz. A acusação foi feita com sorrisos e não em tom irado. Falararam-me especificamente num cinema qualquer da Baixa, não me recordo do nome, com lugares atrás para os pretos e com a primeira plateia destinada aos brancos. Deram mais exemplos, mas só me lembro deste. E não se especificaram décadas.

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