A Turquia muçulmana na UE cristã?

A Turquia poderá integrar-se na União Europeia?

Poderá um país não cristão ser considerado europeu?

A Turquia, em 1964, firmou um acordo de associação com a Comunidade Económica Europeia (CEE), com impacto sobretudo no campo económico. Desde então, recorrentemente, vem à baila o tema da sua integração como membro de pleno direito. Mas esta ideia tem encontrado oposição de sectores influentes, incluindo responsáveis da União Europeia (EU), não apenas de sectores abertamente conotados com o racismo e a extrema direita.

Com efeito, a oposição à integração da Turquia é bastante forte e variada. A mais significativa é sem dúvida a dos sectores tradicionalistas. Um das figuras proeminentes desta oposição tradicionalista é com efeito o recém eleito Presidente do Conselho Europeu, o belga Herman Van Rompuy. Este político democrata cristão, profundamente católico, que ocupou durante um ano o cargo de primeiro ministro do governo do seu país, quando estava ainda nas bancadas da oposição terá afirmado ser impossível a integração da Turquia na União Europeia, por ser um país maioritariamente muçulmano, e a Europa ter uma matriz cristã. E responsáveis turcos dizem que foi a proximidade das suas posições com as do presidente francês Sarkozy e da chanceler alemã Ângela Merkel, incluindo no que respeita à admissão da Turquia, que fez com que apoiassem a sua nomeação para o cargo1.

É sabido que nos sectores mais tradicionalistas da sociedade em geral, mesmo na Europa, são fortes o preconceito e o temor à diferença. Mas há que ir mais fundo a analisar esta questão. A Turquia tem cerca de 780.000 quilómetros quadrados de área, e perto de oitenta milhões de habitantes. É um país extenso e populoso, com um vivo sentimento nacional, cuja força (incluindo a força militar) torna receosos os países vizinhos, nomeadamente os dos Balcãs, durante muito tempo subjugados pelos turcos. Ainda não se completou um século sobre o desmantelamento do Império Otomano, consumado no Tratado de Sèvres (1920), após a derrota na I Guerra Mundial, e sobre o Tratado de Lausana (1923), que reconheceu a independência da Turquia. Mantém-se o conflito com a Grécia, por causa da partilha de Chipre. E outro problema de peso é o da importante minoria curda2, que forma cerca de um quinto da população do país, e periodicamente manifesta tendências autonomistas, chegando à prática de actos de violência, fortemente reprimidos. Só recentemente a Turquia e a Arménia encetaram conversações, no sentido de melhoraram as suas relações, muito afectadas pelos massacres efectuados antes e durante a I Guerra Mundial, e continuados depois por extremistas turcos, que terão aniquilado grande parte da população arménia que vivia sob o Império Otomano.

Mas a Turquia conheceu uma modernização notável, sob o governo de Mustafa Kemal Ataturk Este foi eleito presidente da república em 1923, e iniciou um processo de separação da religião e do estado (o islamismo deixou de ser religião de estado em 1928), de generalização da instrução e do que se pode chamar, para simplificar, de uma ocidentalização dos costumes. As mulheres tiveram direito ao voto em 1930 (antes de Portugal) e foi introduzido o alfabeto latino, em vez do árabe. Depois da Segunda Guerra Mundial, a Turquia integrou a NATO, e durante a guerra fria alinhou com o lado ocidental. Subsistem é verdade grandes diferenças entre as zonas urbanas rurais, há que assinalar, a agricultura tem um grande peso na economia, ocupando ainda há pouco tempo metade da população activa, e a emigração é muito grande, sobretudo para a Europa. A população é jovem e tem uma vitalidade demográfica considerável. Ultimamente o ressurgimento do islamismo também tem afectado o país.

Mas a população turca parece maioritariamente favorável à aproximação com a Europa. Os sucessivos governos têm-se esforçado por reforçar os laços com a União Europeia3. A adesão da Turquia será sem dúvida um teste, mas que vale a pena levar em frente. Fala-se muito de uma Europa envelhecida, pouco estimulada, com pouca coragem para lutar pelos seus valores e para não se deixar dominar pelas outras potências, nos mais variados campos. Que melhor teste do que a integração de uma população mais jovem, numerosa, com características diferentes daquelas que tradicionalmente se atribuem aos europeus? Estes terão assim uma oportunidade única de demonstrar que a tolerância, o gosto pela liberdade e o respeito pelos direitos de todos, princípios que procuraram transmitir ao resto do mundo (com grandes contradições, é bom não esquecer), suportam perfeitamente uma aproximação entre povos diferentes, mesmo quando essa aproximação é numa escala tão grande. E a integração da Turquia na Europa, não é ousado prever, granjeará mais respeito e admiração por parte de outros povos, do que a participação na NATO, ou em aventuras como o ataque ao Iraque ou em guerras como a do Afeganistão.

1 Ver The Guardian, de 21 de Novenbro de 2009.

2 Os curdos são um povo cuja origem é milenária. Os seus antepassados foram povos que habitavam as cadeias montanhosas a norte e nordeste da Mesopotâmia, nomeadamente os medos. Os curdos hoje em dia são cerca de 40 milhões, e possuem língua e cultura próprias. São maioritariamente islâmicos. Vivem sobretudo na Turquia e no Iraque (onde têm preponderância no norte do país), mas também têm presença importante na Síria e no Irão. Contingentes menores habitam outros países da região. Muitos curdos emigraram para a Europa e também para os EUA. Em 1978 fundaram o Partido dos Trabalhadores Curdos (PKK), responsável por várias acções violentas. O seu chefe Ocalan encontra-se detido na Turquia.

3 Vejam-se no Público de 2 de Fevereiro as declarações do primeiro ministro Erdogan, quando do lançamento da estação de televisão Euronews em turco, em Istambul.

João Machado, membro da Assembleia Municipal de Vila Franca de Xira pelo Bloco de Esquerda

Comments

  1. Carlos Loures says:

    Texto muito esclarecedor sobre um tema de grande importância. Belo post, João. Tens é de escrever mais. Um abraço.

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