Uma mulher corta o cabelo

Talvez inquietada pelo comentário do Miguel Dias, fui cortar o cabelo.

A esperança que uma mulher deposita num corte de cabelo chega a ser comovedora. E se a operação inclui mudança de cor, então estamos a falar de um processo de quase transmutação.

O Francisco corta-me o cabelo há uns dez anos, e não precisa de grandes explicações. Basta um “não sei, queria assim qualquer coisa mais… curta” e por um processo químico, mediúnico, de metempsicose ou coisa do género, consegue decifrar, mais do que aquilo que eu quero, aquilo de que preciso.

Temos longas conversas ético-filosófico-morais enquanto a tesoura dança certeira sobre as pontas do cabelo e eu espreito, com uma inquietação que já sei disfarçar, a frenética chuva de cabelos que vai caindo sobre o chão.

Pelo espelho iluminado, as mulheres evitam olhar-se entre si, imóveis e hirtas nas suas cadeiras, nessa espera tensa pela transformação que a tesoura vai operando. Quem gosta de ser olhada com o cabelo partido por uma risca ao meio sem graça ou com a pasta repugnante da tinta a cobrir por inteiro a cabeça e as pontas das orelhas?

Mas a tortura chegará ao fim e o momento triunfante em que nos olhamos ao espelho, ignorando por completo o espelhinho que nos trazem para que vejamos como ficou o cabelo na nuca, que é aquilo que menos nos importa, compensa a humilhação semi-pública e o desconforto.

Uma mulher corta o cabelo e sai rejuvenescida, retemperada, carregando novamente nos braços, como um ramo de flores colhidas pelo caminho, as esperanças que se haviam escapado.

No dia seguinte, quando lavar novamente o cabelo e não for capaz de penteá-lo com a habilidade do cabeleireiro, reencontrará as limitações, os obstáculos, as incertezas. Mas enquanto dura o dia de estreia do novo corte de cabelo, o mundo é um lugar novo e cheio de possibilidades de mudança.

Comments

  1. Ricardo Santos Pinto says:

    Também mostram a nuca com um espelhinho na mão? Pensei que era só aos homens.

  2. miguel dias says:

    Carla : a autoria da frase não é minha. É do grande Schonpenhauer(mas como gostaria de ter sido eu o autor).
    Uma pergunta: após o corte notaste alguma diferença?

  3. Carla Romualdo says:

    Claro que não é, Miguel. Quanto a alguma diferença, não senti que as ideias tivessem ficado mais compridas, mas não sei se é a isto que te referes.
    Ricardo: eu vou a um cabeleireiro unissexo, se calhar é por isso

  4. Carlos Loures says:

    Não podia estar mais em desacordo com o Schopenhauer (e com o Miguel Dias, que lamenta não ser o autor de uma frase que um homem com a inteligência do Schopenhauer não diria nos nossos dias). Só se aceita por ser um conceito com mais de dois séculos e meio e eivado dos princípios do Romantismo, que reservavam à mulher um papel subalterno). Mais um interessante texto, Carla.

  5. Interessante, claro. De tudo pode nascer um belo texto. Até de um corte de cabelo, se a cabecinha o permitir. O que é preciso “é ter esperto no cabeça”.

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