Sem progresso ou regeneração possíveis.


O aparente declínio da actual maioria parlamentar e a iminente eleição do novo presidente do maior partido da oposição, são demonstrativos do funcionamento daquilo a que em Portugal se convencionou chamar de “rotativismo”. Expressão cunhada nos finais do século XIX e à época conotada depreciativamente, espelha afinal a natural alternância no poder de forças que aparentemente antagónicas nas suas bases programáticas e sociais, são a essência da manutenção daquilo a que os marxistas apodaram de “democracia burguesa”. Este tipo de organização constitucional firma o seu edifício no primado da Lei, liberdade de pensamento, expressão e reunião e os consequentes direitos adquiridos ao longo do processo de modernização social que se estenderam à saúde, educação, habitação, etc. Portugal foi um dos Estados pioneiros na construção daquilo que se convencionou designar por liberalismo, pois a consolidação do regime da Carta a partir da década de 60 – a Regeneração -, normalizou o relacionamento inter-institucional, criou as condições para um impressionante desenvolvimento económico e possibilitou o país a constitucional e gloriosamente consagrar ad eternum princípios fundamentais, como a abolição da pena de morte.

O sistema “rotativo” pareceu funcionar com a normalidade decorrente da relação momentânea de forças e mercê da ainda muito incipiente opinião pública oitocentista que esmagadoramente se concentrava nas duas maiores cidades do país e que dependia do funcionalismo do Estado, da imprensa ao serviço dos interesses económico-políticos e como é evidente, das grandes correntes da opinião intelectual que sorviam as influências culturais francesas ou inglesas. Uma das questões que os rivais da Instituição Real levantavam ciclicamente, era o alegado comprometimento do Chefe do Estado com o poder executivo, do qual verdadeiramente fazia parte, pois a Carta atribuía-lhe um papel decisivo na escolha dos ministérios. Não gozando de fortuna pessoal, nem beneficiando de uma vasta rede de contactos e amizades – ou vínculos familiares dentro do país -, o monarca tinha sempre um difícil exercício de decisão, pois a Guerra Civil e o consequente fim dos morgadios, ditou a liquidação da nobreza como estrato de decisiva influência política e económica, onde a Coroa pudesse encontrar fortes esteios, à semelhança do que acontecia no Reino Unido, Itália, Prússia ou Império Austríaco (estes dois últimos Estados com uma fortíssima componente militar e terratenente). Desta forma, o hiato foi preenchido pela burguesia citadina de comerciantes, funcionários públicos e pela episódica emergência de um sonante nome militar cuja patente era rapidamente diluída na camaradagem partidária. Mas este sistema de co-responsabilidade da Coroa, era conveniente aos partidos que mutuamente se digladiavam nas antecâmaras do poder, ao mesmo tempo que frequentemente deixavam o monarca naquilo a que se chamava “ficar a descoberto”. Desta forma, os caudilhos políticos alijavam as suas evidentes responsabilidades, remetendo as decisões para o detentor do trono, o poder moderador. O próprio sistema eleitoral censitário – muito alargado para a época e em nada restritivo se o compararmos com o que se passava na restante Europa liberal, ou com os cadernos eleitorais do regime pós-5 de Outubro -, criava as condições para o normal funcionamento da alternância nos cadeirões de S. Bento e nos gabinetes do Terreiro do Paço. Era a normalidade e a república coroada.

As endémicas dificuldades económicas de um país que despendeu um enorme esforço para a modernização de infra-estruturas (estradas, pontes, portos e caminhos de ferro do Fontismo) susceptíveis de criar novos mercados e dinamizar os centros produtores e exportadores, fizeram sublimar a prodigiosa altura, o decisivo papel do Estado na economia, pois a iniciativa privada nacional não contava com capitais que possibilitassem por si, o almejado arranque industrial verificado na Europa ocidental (R.U., França e Bélgica) e central (Impérios Alemão e Austro-Húngaro). O recurso ao crédito externo numa economia muito dependente da conjuntura internacional – as exportações – e do ingresso de divisas – os dinheiros provenientes da emigração no Brasil -, tornou-se norma e a ele recorreram os governos de ambos os partidos do sistema, os Regeneradores e os Progressistas. Convencionando-se serem os Regeneradores a força “conservadora” e os Progressistas o sector “avançado” no Parlamento, parecia assim existir uma verdadeira possibilidade de escolha programática dos eleitores, mas de facto, a eleição dos deputados dependia sempre do governo no poder, não se furtando ao jogo e combinações, ambos os partidos constitucionais e o novel partido republicano que servia de arma de arremesso consoante o interesse do momento. Na verdade, nada de substancial separava em termos de organização social e económica estas três forças, duas delas hegemónicas e outra, apenas circunscrita a um pequeno número de activistas crentes numa ignota fé redentora e de negação da situação que todos partilhavam. O embuste republicano baseou-se assim, no simples imaginário de miríficas glórias de um porvir que chegaria pela simples mudança de símbolos. Neste aspecto – exemplificado pelo famoso bacalhau a pataco de 1909 -, o nosso Portugal de 2008 não é substancialmente diferente, porque existe uma irresistível vontade em acreditar num futuro límpido e próspero, obra de messiânicos taumaturgos todo-poderosos. É o mito, a fé que degenera sempre na simples e preguiçosa crendice, na qual a entrada do país para a então CEE consistiu num poderoso estímulo para a inércia e o laissez-faire tradicional.

O início do século XX e as dificuldades económicas internacionais, colocaram o “rotativismo” em questão, pois a ele se atribuíam as responsabilidades pela instável vida parlamentar – o português comum desconhecia e desconhece ainda em absoluto, a realidade dos Parlamentos da França, Espanha, Áustria, Itália, ou Alemanha, onde os confrontos eram e ainda o são hoje – muito mais belicosos que aqueles amplamente noticiados pela imprensa lisboeta, o que causava as mais díspares procuras de causas para o aparente insucesso do sistema. Na realidade, tanto os Regeneradores como os Progressistas ou os novéis Republicanos, tinham idênticas concepções de organização social e económica, mas os últimos beneficiavam claramente do recurso ao mito redentor pela destruição da ordem constitucional estabelecida e as ociosas massas lisboetas ouviam o discurso iconoclasta, dando-lhe expressão na algazarra arruaceira. Não surgiam claramente – como o verdadeiro Partido Socialista já à época anunciava – com um programa de largo espectro social, de sindicalização do operariado, nem de apropriação de terras ou indústrias, mas como mero artífices de uma estrutura onde a trilogia de 1789 – aliás plenamente em vigor a partir de 1834 -, aparecia eivada de sortilégios capazes de regenerar o corpo pátrio. Como é evidente, os republicanos propunham a separação da Igreja e do Estado – Igreja que de facto era controlada pelo governo liberal -, como ponto fundamental da modernização social e a abolição da realeza na qual viam o empecilho ao desenvolvimento material do país, sem que contudo conseguissem explicar cabalmente a necessidade da substituição da instituição a quem cabia a chefia do Estado. Alicerçados em sólida e ininterrupta campanha demagógica, os partidos que entre si pouco se distinguiam, procuravam afinal colher os benefícios do exercício do poder, sendo Portugal um exemplo no qual o Estado servia de amortecedor às cíclicas crises de desemprego, possibilitando obras públicas, trabalho – secretarias, empresas participadas pelo Estado, sector escolar e forças armadas – e decisiva influência na conquista de oportunidades económicas no âmbito nacional – Metrópole e Colónias – e internacional – contratos de obra, aquisições, comércio externo. O 5 de Outubro e o regime de hegemonia do “partido democrático”, liquidou o sistema constitucional representativo ao qual o país deveu a sua adequação ao modelo europeu ocidental, sem que se tivessem simultaneamente alterado de forma substancial a correlação de forças em termos sociais e económicos. A agitada e violenta política nacional conduziu directamente a uma experiência autoritária de cinco décadas, esbatendo-se a normal evolução que se verificara noutros países cuja fórmula constitucional não diferia substancialmente da portuguesa.

O “rotativismo” era e continua a ser o sistema da normalidade e de paz social num regime de garantias e liberdades. Se o século XX pareceu consagrar a divisão – aproximadamente em campos de forças numericamente equivalentes – de “conservadores e trabalhistas”, a queda do comunismo e a emergência do modelo neo-liberal de economia, distorceu e comprometeu a distinção mais ou menos clara existente entre aqueles e assim, a criação daquilo a que hoje designamos de “centrão”, coloca em sérias dificuldades a catalogação das até há pouco pacificamente aceites distinções de Esquerda e Direita, que surgem mais que nunca, confinadas a residuais extremos do espectro político partidário.

O Portugal de 2010 encontra-se plenamente submerso no dilema da falta de verdadeira alternativa de modelo político, económico e social, num momento em que a inclusão do país na União Europeia parece secundarizar os reais interesses da sua manutenção como entidade independente no concerto das nações. Urge assim, proceder a uma reorganização partidária que inevitavelmente trará profundas alterações nas normas constitucionais e no sistema eleitoral.

Comments

  1. maria monteiro says:

    o maior partido da oposição vai ter novo presidente? não tinha dado por isso…

  2. Luis Moreira says:

    Não se percebe porque não há em Portugal um rearranjo partidário. Mas esperar que sejam os próprios a fazê-lo é que me parece perda de tempo.

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