Sim, acreditem, a gente pode amar uma cidade, amá-la como se ama uma cidade, com enlevo e ataques de fúria em doses desiguais e alternadas, e chegar da rua assim, a praguejar contra a merda de cão que trazemos nas solas dos sapatos.
E podemos insultar quem condenou à ruína as ruas que amamos desde a infância, chorar esses destroços fantasmagóricos de onde se soltam os azulejos, cansados de esperar uma nova vida que nunca mais chega.
A gente pode amar uma cidade e enfastiar-se da derrota, dos ombros descaídos, do casaco puído de burocrata em passeio de domingo, do cãozinho de pedigree comprado a prestações. E virar a cara para o lado para não ver a nossa pobre gente, condenada a uma velhice de quadro pitoresco para os turistas, a remoer uma côdea de pão na boca desdentada.
A gente pode amar uma cidade e agoniar-se até ao vómito com a loja nespresso, com os pronto-a-vestir da avenida Brasil, com a turba das vernissages que vai indagando “a que se dedica?” e volta as costas quando a resposta não lhe agrada.
Porque assim também se pode amar uma cidade, enquanto se chuta uma pedra e se desce o passeio esburacado, e se leva com a água lamacenta que os carros cospem, porque também se ama com fúria, com dentes e com insultos.
A gente ama uma cidade e caga-lhe na cara todos os dias, quando fecha os olhos à humilhação que lhe infligem, e não faz eco do uivo dos cães perseguidos. A gente ama uma cidade e não amaldiçoa os filhos da puta que a venderam à banca e aos construtores, e cobriram os jardins com um manto de betão.
A gente ama uma cidade e nem vê que ela se nos escapa a cada dia, e que a de hoje já é outra. Que as luzes da ribeira, quando se chega do lado de lá e se entra de mansinho, ao cair da noite, se apagam como pirilampos, que as fachadas apodreceram, e nem uma única ilha se encerrou.
A gente ama uma cidade e, como nem sabe o que fazer com esse amor, guarda-o com vergonha na algibeira.
Mais um bom texto, Carla. Compartilho a raiva com que amas a tua cidade. E às vezes sinto o mesmo perante o que fazem à minha. Mas digo-te uma coisa – as cidades têm mais carácter do que muitas pessoas e resistem até a terramotos. As cicatrizes com que uma, duas ou três gerações desfiguram a face das nossas cidades não conseguem tirar-lhes a beleza. Vê o que os «brasileiros» fizeram no século XIX ao teu Porto. Parecia um atentado de consequências irreparáveis. Hoje, achamos bonitos os prédios com que os «brasileiros» enxamearam a cidade. O pior, como dizes, não são os mamarrachos como os do Taveira aqui em Lisboa – porque ao fim de uns anos habituamo-nos e o sistema imunitário da cidade neutraliza-os. O pior, como dizes, são os atentados contra a paisagem humana. Esses, sim, insanáveis.
Sim, com raiva venho muitas vezes para casa, se calhar com culpas na consciência por não gritar o suficiente. Em Castelo Branco, gastaram milhões em palhaçadas, e o Bairro do Castelo, medieval, está a cair aos bocados e aqui e ali, as velhas e nobres casas, a serem substituídas por enormes prédios de betão.
hoje fui ao Porto, a tua cidade, daí apanhei o metro para Matosinhos depois segui para S.Mamede de Perafita. Por lá andei “em missão” com pessoal de Taizé. De regresso aterrei na Boavista/Shopping Cidade do Porto, lanche no VeraCruz mais metro e Pendular para Lisboa. A cidade é feita de muitos lugares bons e menos bons, de muitos contrastes mas o mais importante é distinguir e amar, ou não, as gentes que fazem da cidade a nossa cidade… Encontra-se muito lixo de luxo mas também muito luxo que mais parece lixeira… a cidade é o sonho de quem vive na província mas também se torna o pesadelo de quem vive na cidade… mesmo assim amo a minha cidade, Lisboa
são muito sábios os vossos comentários, não precisamos de amar a mesma cidade para nos entendermos nesse comum amor
É isso mesmo, Carla, é isso mesmo.
Carla, não comento a alma do texto, da qual tenho a mesma ideia que tu. Dá-me um prazer muito grande, isso sim, saboreá-lo como peça literária belíssima. Daqui te mando um beijinho de parabéns. A té ao próximo café.
Obrigada, Adão! Desta vez, e para não acentuar com mais café a minha distonia neuro-vegetativa (isto é para veres que presto atenção ao que me ensinas), desafio-te para um almoço, e até já sei onde quero levar-te. Alinhas?
Ih, que ciúmes, Adão!
E tu, Luís, estás atento?
Enquanto não posso agendar uma ida a Lisboa que substitua a que tive de cancelar, desafio-vos a virem cá vocês! Ao contrário do que alguns dizem, temos um gosto especial em tratar bem os lisboetas
Eu fiquei com uma arritmia e espero que o Adão leve isso em conta…
Carla, conheço muito bem a excelente hospitalidade dos portuenses e, por diversa vezes, fui beneficiado por ela. Grandes amigos portuenses eu tive e tenho. E, podes crer, futebolices aparte, a grande maioria dos lisboetas gosta do Porto e das suas gentes. Essa hipótese que levantas, hei-de debatê-la com o Luís.
E tu, Adão, um cardiologista, a provocar arritmias! Já viste? Não é bonito.
Nada bonito!
Ora! gosto muito do Luis, mas arritmias no Luis!!!???
Carlos, agenda lá isso.