Apologia de Sócrates (Memória descritiva)

Foram Xenofonte e Platão, sobretudo o segundo, com a sua série de diálogos socráticos, quem deram existência e espessura a uma entidade que, sem os seus escritos quase não existiria. Platão terá feito um retrato justo do filósofo. Diógenes Laércio, séculos depois biografou Sócrates, inspirando-se no que os discípulos e contemporâneos sobre ele tinham deixado escrito. Porque, como Abu Tammam o grande poeta do século IX, nascido em Damasco, na actual Síria, afirmou (e já aqui o citei) só o que é escrito existe – a glória sem palavras é um deserto vão e sem sentido.

De Sócrates não nos ficou uma palavra escrita pelo seu punho. Dele apenas temos o que dele disseram. A maneira como viveu e, sobretudo, o seu pensamento, constituem como disse Sant’Anna Dionísio «uma inexaurível fonte de hipóteses». E constitui também uma das grandes referências culturais daquilo a que se convencionou chamar o Ocidente.

Não vou massacrar-vos com a história de Sócrates, ou com os pormenores do seu julgamento. Isso foi feito por Platão, por Xenofonte, que nos transmitiu dele uma imagem que parece ser simplista, redutora, ou por Aristófanes (que o ridicularizou). Todos o descreveram em registos diferentes. Porém não nos restam dúvidas, porque nisso todos os que sobre ele testemunharam estão de acordo, é que Sócrates privilegiou a dimensão ética do ser humano como seu campo de estudo.

Deixou, através dos que sobre ele escreveram, dezenas ou mesmo centenas de citações como aquela em que diz que «a maneira mais fácil e segura de vivermos honradamente, é sermos, na realidade, aquilo que parecemos ser» ou que «se o homem desonesto conhecesse as vantagens da honestidade, ele seria honesto quanto mais não fosse por desonestidade». São muitas e podem ser encontradas em enciclopédias ou na net. Não vos castigarei com elas.

Deu um exemplo da sua honradez, ao argumentar sarcasticamente perante o tribunal de 500 juízes (o tribunal dos heliastas), representantes da população de Atenas, determinando com o seu sarcasmo agudo a condenação ao suicídio. Pode dizer-se que preferiu a morte a abjurar dos seus princípios. E recusou-se a fugir, como poderia ter feito e como os seus amigos pretendiam que fizesse.

Se tivesse fugido e não tivesse dado uma última lição depois de ter ingerido a fava de cicuta, ninguém ou quase ninguém saberia sequer que, entre 470 e 399 antes da nossa era, viveu um homem que ensinava sem cobrar nada aos que dele colhiam a sabedoria e que fez da sua vida um exemplo dos princípios que defendia. Sócrates não existiria. Sem palavras não há glória.

Se tivesse fugido, teria prevalecido a imagem distorcida que Aristófanes dele traçou na sua peça «As nuvens», acusando o filósofo de exercer uma influência nefasta sobre a sociedade. Por seu turno, Platão não o exaltaria de forma tão apaixonada, insuflando na descrição do mestre o génio que ele próprio, Platão, possuía.

Se tivesse fugido, quem sabe se a filosofia do Ocidente, de Rousseau a Hegel, passando por Kant, que usaram muito da sua dialéctica como alicerces das suas teses, seria o que é? Nietzsche que fundamentou a sua filosofia na negação de Sócrates, o que teria feito? Estamos aqui a falar dele, porque não fugiu. Preferiu a morte à mentira.

Nos últimos tempos, tenho visto aqui no Aventar muitos textos sobre Sócrates. Bem sei que não é aquele de que tenho estado a falar. Não vou aproveitar a quadra carnavalesca para fingir que me equivoquei e fazer trocadilhos fáceis, de comicidade quase assegurada, entre o filósofo e o primeiro-ministro português. Conforme já disse, sobre o primeiro-ministro não falo, Ele é apenas o actual e transitório rosto de um sistema, de um conceito de democracia que abomino. Quando deixar o Governo, outro virá, igual, um pouco melhor, ou um pouco pior. Mas nunca substancialmente diferente. E isso é que me preocupa.

Vou apenas aconselhar aos futuros pais e padrinhos a que tenham cuidado ao escolher nomes para filhos e afilhados. Há nomes muito pesados para atribuir a seres tão indefesos que acabam de chegar ao mundo e que depois, pela vida fora, vão transportar o estigma e a responsabilidade de um nome que nada tem a ver com aquilo que são, dizem e fazem.

Comments

  1. Carla Romualdo says:

    Mas o indefeso a quem toca um nome com esse peso tem também uma escolha ética e moral diante de si. Pode transportá-lo como um estigma que o leva a ficar sempre na sombra da grande referência que ditou a escolha do nome aos pais ou padrinhos, ou pode tomá-lo como uma referência, um farol, que o faz desejar superar-se a si mesmo e honrar, ainda que a uma pequena escala, a esmagadora comparação.

  2. Carlos Loures says:

    Pois, pode fazer essa escolha, se tiver a inteligência e a coragem necessárias. Mas a insustentável leveza do ser, debate-se contra o tentador peso do ter – a carreira, a conta bancária, a fama… e a maioria das pessoas, como dizia o Oscar Wilde, resiste a tudo menos às tentações. E, além disso, convenhamos que há modelos que é difícil seguir e imitar. Sobretudo para um político.

  3. Luis Moreira says:

    Avisado andou o meu pai que me deu o nome de Luis, quando o meu padrinho se chamava Luis Queijo…

  4. maria monteiro says:

    antigamente, quando dizia que me chamava Maria perguntavam sempre “Maria quê?” …de há uns anos para cá virou moda o simplesmente … Maria

  5. Carla Romualdo says:

    AH! É boa, nem me tinha lembrado disso! Mas tens razão, fiz a mesma coisa!

  6. Carlos Loures says:

    Leoa, a Carla? Não. É dragoa (dragão não tem feminino, pois não? ). Já agora, que nome puseste ao teu herdeiro? Aristóteles?

    Maria é um belo nome, Maria. Para os católicos assume grande significado e motivo de culto.

  7. Carla Romualdo says:

    Aristótoles era uma possibilidade, mas como pensei que poderiam fazer pouco dele na escola ficou Alexandre.

  8. maria monteiro says:

    A escolha não foi exactamente por motivos católicos mas porque a minha mãe não se tinha inclinado por nenhum dos nomes sugeridos: Maria Manuela ou Maria do Rosário (padrinhos Manuel e MRosário) assim ficou o que era comum a ambos os nomes: Maria

  9. Carlos Loures says:

    É um nome ambicioso. Pertenceu a um homem com uma visão política de grande alcance. No entanto, a maioria das pessoas não sabe quem foi Alexandre o Grande e, desse modo, o teu menino está protegido pelo baixo índice cultural reinante. Foi uma boa escolha.

  10. Carlos Loures says:

    Maria do Rosário seria um nome ainda mais católico (creio que os protestantes não usam rosários). Maria só, ou «simplesmente Maria», foi uma boa ideia.

  11. maria monteiro says:

    para não ser demasiadamente católico chamam-me sempre Mimi 🙂

  12. Carla Romualdo says:

    Obrigada, Carlos. Ele parece não querer fugir aos nomes de peso porque quando começou a falar, e não conseguindo ainda dizer “Alexandre” começou a referir-se a ele mesmo como “Sansam”

  13. Carlos Loures says:

    Carla, nesse caso, cuidado com os cortes de cabelo.

    Maria, as Marias não escapam ao diminutivo – o Paulo de Carvalho tem uma bela canção sobre uma Mimi.

    Já viram onde vamos, em cortes de cabelo e no Paulo de Carvalho?

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