Carta de uma sapa a Sua Alteza Real

Sua Alteza Real,

Queridíssimo Príncipe

Fosse eu uma sapa sensata, cumpridora do pouco que se espera de uma criatura da minha espécie, e jamais me atreveria a dirigir-me a Vossa Majestade.

Saiba, porém, Vossa Alteza que tentei certa vez chamar-vos a atenção, quando, a caminho da fonte de S. Bento, passou a real comitiva junto ao meu pequeno charco. Mas a passarada andava inquieta nesse dia, com uma invasão de gaivotas dadas à ladroagem, acabadas de chegar do litoral, e o ruído era tanto que Vossa Alteza não pôde ouvir o meu humilde coaxar. Afastastes-vos com passos rápidos, e com tamanha pressa, que das vossas reais botas saltaram uns salpicos de lama, que me acertaram em cheio.

Sou, como todas os seres que conheço, vossa súbdita. Habito no charco abrigado entre o olival e a fonte, e desde o qual, para minha fortuna, se avista o vosso palácio. Habituei-me a ver-vos percorrer o pátio de entrada, assomar à varanda do vosso quarto, sair cavalgando pela manhã, e de tanto assim vos ver, formoso e intrépido, enamorei-me de Vossa Majestade.

Bem sei, Alteza, que vós sois humano e eu anfíbia, e que nunca se viu uma união assim desde que o mundo é mundo. Sei que a muitos da vossa espécie repugnam os meus semelhantes, mas por certo não esquecerá Vossa Alteza que somos nós a afastar dos vossos jardins os malévolos moscardos ou os calculistas gafanhotos.

Diz-se que no vosso palácio abundam os quadros vindos de países longínquos, os ornamentos de ouro,  os ricos tecidos, e as mulheres com vestidos de seda vaporosa e ombros nus, e que com elas dançais noites sem fim, e que todas por vós se apaixonam, afinal.

Não serei formosa, como essas damas que ornamentam os vossos bailes, admito até que possa repugnar-vos a minha pele verde e rugosa, a longa língua peçonhenta, ou o meu papo inflado. Tenho visto que aos humanos causa repulsa ver-me caçar o meu alimento e que vêem com nojo como estendo, sem que o corpo me estremeça, a língua elástica, e com ela paraliso num abraço mortífero qualquer insecto que me pareça apetitoso. Mas tampouco me parecem bonitas de ver as vossas caçadas – um alvoroço de gritos, tropel de cavalos e tiros – e menos bonitas ainda as figuras dos caçadores (entre os quais Vossa Majestade), quando, ao fim da manhã, regressam com os cintos carregados dos cadáveres dos meus irmãos do bosque. Pouco custará, afinal, a cada um se ambos desviarmos o olhar das imperfeições do outro, não vos parece?

Alteza, se eu pudesse mostrar-vos as noites de Verão, quando o charco se aquieta, e as águas estagnadas reflectem a cintilação das estrelas… Se vos sentásseis a meu lado, eu cantaria toda a noite, e até deixaria passar incólume algum mosquito que se atrasasse do passeio, para vos poupar o enojo. Nas manhãs de Primavera, poderíamos atravessar sem pressas o souto, aspirando o ar ainda húmido da alvorada,  e eu, instalada no vosso ombro protector, deixar-me-ia levar por Vossa Senhoria.  Na dança dos nenúfares, exibiria para vós toda a minha graciosidade, saltitando, com harmonia mas sem descurar a destreza e a audácia, de nenúfar em nenúfar, arriscando, a cada salto, o brio de uma sapa ante o seu enamorado.

E vós, Majestade, levar-me-íeis, enfiada no bolso maior da vossa casaca, a ver os grandes tesouros das terras reais, e decerto nos deteríamos frente ao maior de todos, a ala das íris no vosso jardim. E,  quem sabe aí, à sombra do seu intenso azul, poderíeis olhar-me nos olhos e ver que há mais, bem mais em cada criatura do que a máscara que lhe tocou envergar.

Tenho, para oferecer-vos, o meu amor, que pouco vos pede, e este meu acanhado mundo, que vos pertence por inteiro e no qual reinais.

Conto que a vossa magnanimidade saberá perdoar a ousadia desta missiva e que o vosso coração ditará a resposta que aguardo com ânsia.

Da vossa

Sapa

Comments

  1. Luis Moreira says:

    Ó sapa, se ele não vê que há muito mais em ti, corre com ele, não há pior cego do que quem não quer ver, e ele de majestade não tem nada, magnidade nicles batatóide, o pior de tudo é gostar de quem não repara em nós. Se for preciso diz que eu vou aí ao charco e meto o gajo na lama, de que tu nunca serás salpicada!

  2. maria monteiro says:

    Parece que se prepara uma rebelião no charco…

    • Luís Moreira says:

      Eu, com este leveza com que a natureza me brindou, deito-me num nenúfar…

  3. carolina santana says:

    excusez-moi, senhor, mas achei um excelente paralelo.

    Uma estátua disforme e límpida onde as mulheres se derramam.
    Vida perdida sob as manhãs modernas, esquina cortante ou mar diluente
    na ferida aberta, fenda que quebra o maduro estanho, nítida como se fosse
    a mais clássica forma de Eros amando o silêncio escassamente poético
    do falo herético. São horas do pecado na cidade original: novo tipo de amor,
    classicamente europeu, sobre a ideia mais idiota dos cavalo irreais.
    A hora do pecado original abeira-se de nós e a cidade liberta do fundo
    um cheiro nacional em cada joalharia que os ladrões assaltam durante a noite.
    Uma saudade com molho de metafísica retém a imagem do abismo
    num poema que escorrega na calçada e fica a coxear como os sapos coaxam
    ou como os poetas ganem crucificados nos próprios versos. Passa da meia-noite,
    são horas do pecado na cidade original. Toma esta palavra oca
    e mete-a na tua boca. Passa as narinas e o olfacto mais sensível
    sobre a carne potente e o odor masculino dos cavalos irreais.

    Luís Adriano Carlos

  4. Luis Moreira says:

    Líndissimo, Carolina!

  5. carolina santana says:

    sim, tanto quanto pudermos acreditar no que a nossa visão nos mostra. uma caracterí­stica das tragédias clássicas, tornarem-se cada vez mais breves até ao fim.

  6. Mais uma vez Carla, é o texto e não propriamente a história, ainda que bem engendrada, que me atrai. A história é a matriz para mais um belo trabalho

  7. Carlos Loures says:

    O MIlan Kundera diz que o escritor, mesmo quando ficciona, está a falar de si, No entanto, Luís, as ficções não são autobiográficas ou, pelo menos, nem sempre o são. Não temos de colocar a Carla no papel de sapa. Simplesmente, ela adoptou a perspectiva, antropomorfizada, claro, de uma sapa. O poeta, e o escritor em geral, é um fingidor, como disse o Nando.

    Carla, é um texto muito, muito interessante. Não precisas de mais nada, nem de aprender nada. És uma escritora.

    • Luís Moreira says:

      É pá, eu estava a referir-me à sapa…já vi que sapateiro, fui além da chinela!

  8. carla romualdo says:

    Eu percebi, Luís, não te preocupes.
    Agradeço muito os comentários tão encorajadores.
    Carlos: muito obrigada, até corei.

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