A Ginjinha e o engraxador

A oliveira que se vê à direita da foto é o meu encanto. Veio da Palestina no âmbito de um intercâmbio e sendo árvore de terreno aberto ,terreno seco e ambiente mediterâneo, dá-se aqui no meio da multidão. Milagre?

No centro vê-se a Estrela de David em homenagem aos mortos Judeus de 1506 em que uma terrível carnificina assolou Lisboa. Do lado esquerdo, em frente da oliveira a Igreja de S. Domingos, comida pelo fogo assassíno, recuperada deixando à mostra os efeitos do fogo que lavrou com uma intensidade medonha, o que lhe dá um ambiente medieval muito interessante. O tecto, em “labaredas”, reproduz o fogo e o chão de pedra original, gasto pelos séculos e por milhões de pessoas que ali ocorreram, toca-nos como um livro aberto na página certa, lembra-nos os desgraçados que dali saiam “confortados” para morrerem nas piras que ardiam no largo em frente.

Junto à oliveira, e para balançar as coisas, lá está o “H” em pedra e aço em que D. Policarpo pede perdão pelos crimes da Igreja. Nas costas do fotógrafo existe o Palácio da Indepêndencia, onde os conjurados de 1640 teriam lançado da varanda o “traidor” andeiro da Rainha pois já naquela altura havia que “chercher la femme” para se ir ao amâgo dos desvarios dos homens.

À direita da oliveira encontra-se a “ginjinha” lugar de encontros e desencontros mas sempre pronta a apaziguar “fogos” interiores, copo na mão (agora lavados…) amigos em círculo e ali se contam as histórias de sempre, interrompidos de quando em vez pela graxa dos sapatos que há que manter gente e tradição. Em frente mais à direita, o teatro D. Maria ll tambem já consumido pelo fogo, anterior palacete da Inquisição e posterior cavalariças de Sua Magestade cuja rectaguarda dava para uma das portas da cidade, ainda hoje existente, as Portas de Santo Antão, onde podemos  encontrar o Coliseu e várias teatros, um modelo de “Lisboa à noite” que tinha desaparecido com o apagamento do Parque Mayer e, mais à frente, já na rua de São José, prolongamento das Portas de Santo Antão, o “Pátio do Tronco” onde Camões teria estado acorrentado ao “tronco” depois de mais uma bulha, à conta de saias…

Por isso gosto tanto de ti, “Camões, grande Camões, igual cousa nos fez perder o Tejo e arrostar o sacrílego gigante…” chora o Bocage “… como tu, tambem eu junto ao Ganjes sussurrante, carpindo estou saudoso amante…” como vos compreendo quando me perco nestas ruas cheias de história e de gente, onde Cesário Verde, pressentindo o que só o poeta pressente, “…sinto uma paradoxal vontade de morrer…” lambia as feridas da sua tuberculose que o havia de matar aos 33 anos…

Comments

  1. Carlos Loures says:

    Bonito. A evocação de Cesário Verde é-me particularmente cara. Hei-de, oportunamente, publicar um texto meu que usa o «Sentimento dum ocidental» como mote. Nasci a duzentos ou trezentos metros deste pequeno largo. É a minha aldeia.

  2. maria monteiro says:

    Muito bonito este cantinho de Lisboa que transporta o peso das nossas e de outras vidas…

    mas aqui vão uns pequenos acrescentos… 1)a ginjinha bebia-se em copinhos de vidro grosso (agora são de plástico); 2) quanto ao milagre da oliveira também há muitos desses milagres, mas nacionais, aqui nos Olivais (onde as oliveiras foram replantadas por entre casas e jardins); 3) o panorama menos bom é o da pobreza que continua a existir à porta da Igreja

  3. Carlos Loures says:

    Belo texto, Luís. Não nasceste em Lisboa, mas sentes a cidade. É-.me particularmente cara a evocação do «Sentimento dum ocidental», do Cesário Verde.

  4. Carlos Loures says:

    Belo texto, Luís. Não nasceste em Lisboa, mas sentes a cidade. É-me particularmente cara a evocação do «Sentimento dum ocidental», do Cesário Verde. Uma informação, Maria: ainda se pode beber por copinhos de vidro. Os de plástico são alternativos (a pensar nos camones).

  5. Carlos Loures says:

    Belo texto, Luís. Não nasceste em Lisboa, mas sentes a cidade. É-me particularmente cara a evocação do «Sentimento dum ocidental», do Cesário Verde. Uma informação útil, Maria: continua a haver copinhos de vidro – os de plástico são alternativos (em intenção dos camones e afins).

  6. Carlos Loures says:

    Não consegui que o primeiro comentário entrasse e fui reformulando.

  7. maria monteiro says:

    pois então ando a ser enganada pelos amigos que me trazem cá fora a ginjinha. Tenho que reclamar

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