Arte Nova e amabilidades entre vizinhos (Memória descritiva)

Não sei se já repararam que os países com fronteiras comuns, como o caso de Portugal e de Espanha ou de França e Inglaterra, ainda que hoje em dia vivam em paz, tiveram ao longo da História guerras e conflitos que hoje ecoam em picardias e se extravasam quando dos jogos de futebol ou de rugby ,no caso de francos e anglos. Problemas que vêm do passado. Só uma das guerras entre França e Inglaterra durou cem anos. Os confrontos entre portugueses e castelhanos forma também numerosos. Tudo isto deixa marcas e se prolonga em pícaras alfinetadas, anedotas, aforismos, expressões.

Não vou fazer uma análise exaustiva aos aforismos, que depreciam castelhanos em Portugal e portugueses em Espanha – Apenas um exemplo: para os castelhanos usa-se muito o termo «portuguesito» no sentido pejorativo, como sendo o país pequeno, todos fossemos apequenados pela baixa dimensão territorial. Lógica segundo a qual um luxemburguês nunca poderia ser maior do que um russo.

Há uma coincidência engraçada. Experimentem abrir um dicionário espanhol em «Portuguesada», Vou consultar o da Real Academia. Cá está: «portuguesada, f. Dicho o hecho en que se exagera la importancia de una cosa».(“Diccionario de la lengua española”, p.1645).

Vejamos agora no Machado, o termo «espanholada». Na minha edição, está na página 670 do volume II: «Espanholada, s.f. Dito próprio de espanhol; fanfarronada; hipérbole». Com o mesmo significado, temos também o vocábulo espanholice. Interessante como mutuamente nos atribuímos o hábito de exagerar. Uma atracção pela hipérbole que, provavelmente, afecta portugueses e castelhanos (os catalães são demasiado rigorosos para se atreverem a exagerar).

Entre ingleses e franceses existem as mesmas amabilidades. Vou apenas referir um caso – sinónimo popular para preservativo. Os franceses chamam-lhe capote anglaise; os ingleses usam a expressão french letter.

Mas não era sobre este tipo de picardias linguísticas, que dão para um belo estudo, mas sim de uma outra questão – o snobismo de usar expressões estrangeiras. Décadas atrás, o francês impunha-se como língua e cultura e, mesmo nos países anglófonos, era de bom tom usar expressões francesas. São tantas as que se usam em inglês que me dispenso de as enumerar. Não falo nos 20% que se diz que o inglês contém de francês, por herança da invasão normanda. Falo de expressões como coup d’état ou coup de grâce. Nas últimas décadas o inglês impôs-se como língua franca em todos os domínios e foi em vão que em França se procurou manter a língua francesa à tona. Ainda sobreviveu como idioma diplomático, mas actualmente até na área das relações internacionais, o inglês passou para a frente.

Os da minha geração lembram-se desses anos 50 e 60 em que os franceses iam perdendo a batalha e, sobretudo, nos filmes, começavam a despontar nos diálogos palavras inglesas ditas com aquele inconfundível acento que os franceses usam mesmo quando falam línguas estrangeiras.

Há dias contei um problema que enfrentei quando do lançamento de uma «História de Arte», cuja direcção foi entregue ao Professor José António Ferreira de Almeida. Originalmente a obra fora escrita pelo critico e historiador catalão José Pijoan (1881-1963), mas sofrera na edição internacional grandes alterações, com numerosos autores de diversas nacionalidades a escreverem textos específicos.

Claro que esta não é a melhor forma de conceber uma obra, mas há que ter em conta que se tratava de um projecto concebido para vários países ao mesmo tempo. Naquela altura seria impensável editar para Portugal uma obra em dez volumes, com mais de três mil páginas todas a cores. Só era possível no sistema de co-edição. Só a chapa do negro do texto era diferente para cada edição – as outras quatro eram iguais. Vamos supor que se imprimia dois milhões de exemplares: havia a impressão simultânea das cores e só o negro para cada idioma era impresso em separado.

Pois os problemas com essa obra não ficaram por aí. Um fim de tarde estava no meu gabinete da empresa, quando um revisor me bateu à porta. Colocou-me à frente a edição espanhola e a respectiva tradução. Era um texto de Alexandre Cirici, um professor e crítico de arte catalão e versava sobre a Arte Nova.

E começava assim: «Com o nome de Arte Nova designamos hoje um fenómeno que no seu tempo recebeu várias denominações e que não teve exactamente os mesmos aspectos nos diferentes países, separados por fortes traços nacionais e por situações socioeconómicas diversas. Chamou-se Modern Style em França e Art Nouveau em Inglaterra e nos Estados Unidos…»

Disse-me o revisor, um homem muito competente que vinha da velha escola da Imprensa Nacional: – Isto só pode estar mal – Modern Style em França e Art Nouveau em Inglaterra e nos Estados Unidos.? Pode lá ser! É ao contrário, não é? Vi a edição em castelhano, de onde estávamos a fazer a tradução, e estava da mesma maneira. O tradutor não se tinha enganado. Disse o revisor: – É porque se enganaram na edição espanhola. É evidente. E eu respondi que sim. Estava mesmo a ver-se e era evidente.

Pois estava, pois era.

Quando as páginas ficaram impressas (o trabalho nas diversas línguas era todo impresso numa grande gráfica de Pamplona), recebi um telefonema de Barcelona. Tínhamos cometido um erro grave, diziam-me – o Professor Cirici tinha estado a ver o seu texto nas diversas traduções e a nossa estava errada. Segundo o professor, era mesmo como estava na edição em castelhano – a designação em inglês usava-se em França e a francesa em Inglaterra e nos Estados Unidos.

Consultei logo o Professor Ferreira de Almeida, telefonando-lhe para o Porto. Do outro lado da linha veio uma grande gargalhada quando lhe sintetizei o problema. Respondeu-me que o Cirici tinha alguma razão, porque nos países anglófonos prevalecera a designação em francês, mas que em França, tirando uma ou outra fonte, se dizia Art Nouveau. Porém, garantiu que não era motivo para reimprimir, pois a nossa correcção, embora talvez incorrecta, era mais consensual.

Como de Barcelona insistiam, para não deitar fora todo o caderno em que estava o erro ou o suposto erro, chegámos a um acordo. Em futura tiragem pôr-se-ia como Alexandre Cirici pretendia. Por isso, circulam duas versões do mesmo capitulo sobre a Arte Nova. Se compraram esta obra, fiquem sabendo que, seja qual for a versão que tiverem, está certa. Ou errada.

Comments

  1. carlos ruão says:

    meu caro Carlos Loures,

    … nos meus tempos de universitário, a obra na qual participou – a História da Arte dirigida por Pijoan -foi um marco académico importante e seria a primeira abordagem genérica nas cadeiras de História da Arte Universal (algo que pode ser confirmado pelo meu companheiro de armas e de curso, João José Cardoso)
    … não tanto como a História da Arte em Portugal, mas quase.
    … tenho, de facto, a edição onde o «suposto» problema foi corrigido e aparece a designação «art noveaux» em França e «modern style» em Inglaterra e EUA.
    … tenho, igualmente, na memória a importância que o malogrado mestre Ferreira de Almeida teve na e para a História da Arte Portuguesa.
    mas … como docente de Arte Nova na ESAD permita-me uma precisão…
    … como disciplina da História, a História da Arte, evolui e a perspectiva e o conhecimento que hoje está ao nosso dispor acerca deste assunto é muito superior e infinitamente mais vasto, fruto do trabalho intensivo sobre o nascimento do «design» contemporâneo que, como bem sabe, se identifica com o movimento Arte Nova, o primeiro momento onde Arte e Técnica encontram uma primeira síntese na contemporaneidade.
    … direi apenas que o termo «art noveaux», nome de uma loja de pouca importância no contexto geral, aberta em Paris em 1895, se generalizou fruto da cultura francófona da época -posteriormente à morte do movimento – e isto para além dos grandes centros do movimento serem alemães – Veimar, Munique e Darmstadt – onde a designação «Jugendstill» imperava.
    … não obstante os americanos nunca adoptaram o termo «modern style» mas sim o termo «variety». há aqui um erro.
    … é também importante apontar o seguinte dado: o movimento internacionalista, contrariamente ao que se diz, revela de facto traços unificadores sob o ponto de vista politico-social (socialismo/william morris), técnico material e estético, prolongando-se de Chicago a Viena e encontra-se praticamente extinto em 1900, sendo a Exposição Universal de Paris o seu canto do cisne.
    … a discussão terminológica é posterior.
    … um bom mestre não está ausente do erro, como bem sabe, tal como bem sabe que a disciplina a que nos referimos se designa por HISTÓRIA DA ARTE e não HISTÓRIA DE ARTE !
    … lembro-me da pequena humilhação por que passou um colega meu nas provas de mestrado por achar que estava a fazer investigação na área da história «DE» arte.

    cumprimentos

    carlos ruão

  2. Carlos Loures says:

    Caríssimo Carlos Ruão: O erro no título da obra é meu e não do Professor Ferreira de Almeida (só podia ser). A obra chamou-se «História da Arte». O escrever de memória tem estes inconvenientes. Só consultei o volume para transcrever o início do capítulo. Que fique claro que o professor não se enganou. Também dirigi editorialmente a «História da Arte em Portugal» que, como sabe, não teve um director científico geral – cada volume foi dirigido por um especialista. Por exemplo, os volumes sobre a Alta Idade Média e sobre o Românico, foram dirigidos pelo Professor Carlos Alberto Ferreira de Almeida (que não era familiar do director da História da Arte). Fui ao Porto com frequência (mais propriamente, a Gaia, pois o professor morava num rua perpendicular à Av. da República); encontrámo-nos muitas vezes em Lisboa, também. Mas enfim, o curioso foi a insistência do Alexandre Cirici (estive com ele uma tarde inteira nas instalações de Barcelona) na troca de designações. A edição em castelhano está assim: Art nouveau em Inglaterra, Modern style em França. Enfim, quis contar uma anedota vivida. Obrigado pelo seu comentário,

  3. carlos ruão says:

    … percebi a sua intenção (contar uma anedota vivida) e por ter gostado e acompanhar estas coisas de que poucos se interessam, decidi escrever algo… com um preciosismo de investigador (o suposto erro de não identificarem o termo «variety» para os EUA).
    … é evidente que não estava a acusar o mestre Ferreira de Almeida do referido «erro» ou suposta «correcção» – que nasce da fonte original – e também sei que a sua formação era no campo da arqueologia, o que não invalida que tenha sido um excelente medievalista no que diz respeito à Arte.
    … de qualquer forma …
    … e já que se toca numa questão interessante…
    … mesmo o mestre do meu mestre, o padre Nogueira Gonçalves, de vez em quando, fruto da época e da informação que tinha perante si, lá ia escorregando um bocadinho e mesmo o maior historiador da Arte Portuguesa de todos os tempos, o célebre Virgilio Correia, lá tinha as suas limitações – o que nunca invalida a visão e a «actualidade» do mestre !!! (e como eu me delicio ainda hoje a ler os seus insuperáveis textos!)
    … concordo com um dos últimos verdadeiros mestres universais, George Steiner, quando afirma que o maior prazer de um mestre é ver o discípulo ir mais longe do que ele próprio
    … não era o outro que dizia que, por vezes, Homero dormitava ?

    ps: como deve compreender, tenho uma e a outra «enciclopédia» na minha biblioteca e não estarei muito longe da verdade se lhe disser que foram das primeiras coisas que comprei na vida (aliás, passei parte do meu curso a pagá-las) ; com os seus pequenos «erros», prezo-as muito e nunca deixei de consultá-las e muito devo ao trabalho do meu caro Carlos Loures e de outros, à época. muito obrigado !

    ps2: quanto ao preciosismo do uso do «de» em vez de «da» não se apoquente pois mesmo Vítor Serrão, esse génio da História da Arte Portuguesa, meu antigo mestre e ex-amigo, cai muitas vezes na mesma tentação e plasma-a nos seus livros, para meu espanto e da pequena minoria do seu séquito.
    portanto, como vê, até do mais alto pódio…

  4. Carlos Loures says:

    Vítor Serrão foi um dos directores de volume (como sabe, dirigiu o dedicado ao Maneirismo) com o qual travei uma boa amizade. Com o Professor Pedro Dias, também. O Professor Carlos Alberto Ferreira de Almeida, quando fazíamos uma pausa no trabalho, tentava explicar-me as suas complicadas teorias sobre a maniera de ganhar no totoloto. Na verdade, ele mantinha todos os anos um saldo fortemente positivo. Enfim, com um outro acidente de percurso, foi uma obra que gostei muito de editar.

  5. carlos ruão says:

    … não o conheci por pouco, mas conheço todos os seus «companheiros» da «escola do Porto», destacando, claro está, o Jaime Ferreira Alves, que sublinho ainda mais do que a emérita esposa (e, já agora, o meu arguente na tese de doutoramento, o jesuíta Fausto Sanches Martins, da mesma universidade)
    … o Vitor foi meu amigo … e é de facto um velho diamante não lapidado.
    … o Pedro Dias foi e é o meu mestre de sempre (licentiatura. mestrado. doutoramento. pós-doutoramento) e também o é do vosso «aventador» João José Cardoso.
    Sobre a sua mais valia (dele, Pedro Dias, citado como autor) e «atitude aurífera» para a História da Arte em Portugal – muitas vezes menorizada por invejas de paróquia face a tão volumoso papel – mais facilmente encontrará o João José uma palavra que o defina pois eu apenas tenho frases longas ou então daqueles silêncios em que o discípulo percebe o que o mestre diz sem nunca o ter dito …

    abraço

    carlos ruão

  6. ó Carlos (os 2):
    deixando o maior para o miserável clube de que sois adeptos, sinto-me um bocado pateta no meio da vossa troca de bocas.
    O Carlos Ruão é, toda a gente sabe no meio, um dos melhores historiadores de arte no activo, razão pela qual obviamente vive de biscates, e o Carlos Loures é um dos editores sérios na historiografia actual, a quem (não) falta a mesma glória académica.
    Posto isto, sugiro uma cerveja, algures no inferno, como mal tradutou um mau pintor a propósito de um Rimbaud qualquer…

    • Luís Moreira says:

      Por falar em amizade. Então eu ando aqui a escrever sobre natureza-morta e tu só agora é que me dizes que o Carlos é especialista em pintura? Obrigadinho!

  7. Carlos Loures says:

    João José, «miserável clube», o Glorioso SLB? Que maneira de começar uma frase! Então o que dizer de associazõezecas, com sedes em bares de alterne? (ou vice-versa). Já respirei fundo, vamos continuar. Não editei apenas obras de história – editei obras que abrangem praticamente todo o vasto leque do conhecimento humano – da Culinária à Medicina. Felizmente que estas coisas não se pegam e continuo sem saber estrelar um ovo e de médico apenas tenho a loucura de que fala o aforismo. A propósito de médico, ó João José, vê lá se tomas as gotas a tempo e horas. Quando falares do Glorioso deves pôr-te na posição de sentido. Lembras-te do Frank Sinatra – «the voice»? Pois, o Glorioso é «o clube» – o resto são imitações, meras sociedades de recreio. E não me fales de campeonatos de futebol, senão obrigas-me a falar naquelas escutas que andam pelo youtube. Quando se comemorou o 5º. aniversário, ainda me lembrei de pôr no Aventar algumas delas (que não tive pachorra para ouvir). Temi ferir susceptibilidades.

  8. Carlos Loures says:

    Mais uma coisa, José João, o Cesariny era tudo menos pateta. Mau pintor, talvez, mas excelente poeta. Digo isto a bem da verdade (como quando corrijo calúnias ao Glorioso). Tinha um mau feitio insuportável e estávamos de relações cortadas desde meados dos anos 60. Vinha eu da prisão de Caxias, farto de levar porrada e de uma banho de «sono» de antologia, além de meses de cárcere, e põe-se-me o Cesariny a dizer que eu estava aburguesado. Isto vindo de um tipo que passava os dias no café e que vivia (segundo o Pacheco) à custa da mãe. Respondi a rigor e pronto, zangámo-nos. Mas foi um grande poeta. Pintor, talvez não. Fazia uma coisas engraçadas, misturando mercurocromo, óleo, verniz banana e guache… Quem lhe comprou os quadros ou os manda restaurar ou a duração não vai ser muita.

  9. Carlos Loures says:

    Uma nova adenda: com as picardias, esqueci-.me de dizer que sim, que gostaria muito da tal cerveja no inferno. Por mim, até pode ser no «inferno da Luz» (vulgo «Catedral»)… Há lá uma coisa chamada «Catedral da Cerveja», orientada pelo Carlos Alberto Moniz, o açoriano das cançonetas.

  10. carlos ruão says:

    … a cerveja é, de facto, uma bebida infernal e está para o inferno como o vinho para o olimpo e assim se arrumam os deuses.
    … se só isso te levará ao «inferno da luz», então, como vês, tens dois seres infernais para te conduzir, meu caro João José – claro que se o carlos loures tem a vantagem de ter história feita, eu tenho a mesma vantagem de não a ter, o que não deixa de ser muito surrealista.
    … mas não sairás imaculado, isso é garantido 🙂

    abraços aos dois

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