Gabriela Mistral

Foto da petisa ao ganhar o prémio Nobel

Tinha eu, se bem me lembro, doze ou treze anos, quando a vi pela primeira vez. Ela tinha vários anos mais, sempre calada e silenciosa. Falava quando lhe parecia bem. A maior parte da sua vida, do seu dia, das suas noites, em silêncio. Exprimia os seus sentimentos por escrito. Vestia sempre uma roupa larga, tecida num tipo idêntico à serapilheira, que raramente mudava. Raramente também tomava banho, somente lavava o interior do seu corpo e as partes públicas. Não cheirava mal, apenas quando bebia a sua bebida preferida, a sangria, essa bebida que combinava um nadinha de vinho, muita água e açúcar, que bebia várias vezes ao dia. Tinha o mau hábito de arrotar após as refeições, costume que ninguém apreciava, era de um som e fedor repelente.
Gabriela foi o nome por si escolhido por puro prazer e Mistral, porque sentia ser o vento que soprava com força e tudo varria. Tal como ela com os seus versos e os prémios que vencia. Tanto quanto me lembro (escrevo exercitando as minhas memórias pessoais), nasceu na vila de Vicuña, no Vale de Elqui, situada no norte do Chile. Nasceu de mãe madura e assistida por uma parteira, que sofreu imenso a tirar a criatura do ventre materno, vinha mal posicionada e quase asfixiada, nesse 7 de Abril, dia do seu nascimento no ano de 1889. Viveu até 1957, relembro esse dia e o pranto que não cessava de cair dos meus românticos olhos e coração e do amor que sentia pela sua poesia e pela sua pessoa. Viveu apenas 68 anos, faleceu a 10 de Janeiro, dia da sua entrada na eternidade, poucos meses antes do seu próprio aniversário. Oriunda de uma família pobre, a sua mãe, Petronila Alcayaga, filha ilegítima de uma empregada doméstica (Lucia Rojas), casa aos 44 anos com Jerónimo Godoy Villanueva, que pensava estudar para sacerdote mas, ao sentir-se sem vocação, sai do Seminário, tempos depois do casamento abandona a mãe e a filha, para se dedicar eventualmente ao ensino, do qual acaba por ser despedido por não saber ensinar e por estar sempre embriagado. A nossa Gabriela foi criada pela mãe da sua mãe, após a morte desta, em 1929, Dona Isabel Villanueva, católica ferrenha, chamada a teóloga por saber bem a Bíblia, a catequese e impingir em todas as crianças ideias cristãs, foi o tormento de Gabriela. Essa Gabriela a quem foi dado o nome de Lucila de Maria del Perpetuo Socorro Godoy Alcayaga. Lindo nome para uma futura poetisa de fama internacional!
Nasceu em Vicuña por casualidade, poucos dias depois a família muda-se para o povo de La Unión e mais tarde, para Elqui. Tinha poucas amigas, era uma rapariga solitária, que gostava muito de ler, enquanto as outras crianças da sua idade brincavam. Como lembram as ainda sobreviventes de Elqui, o seu jogo preferido era o de ensinar, sendo as amigas as suas alunas. Era uma rapariga normal, mas aparece uma lenda. Aos quinze anos conhece Romélio Ureta, que trabalhava nos caminhos-de-ferro. Namoram, mas um dia qualquer de 1906, o seu namorado suicida-se por causas pouco conhecidas. A sua tristeza é tão imensa, que orienta a sua dor para a escrita. Eis que nasce o livro: Os Sonetos de la Muerte, que começa com o poema guardado na minha memória:

«Del nicho helado donde los hombres te pusieron,

te bajaré a la tierra humilde e soleada.

Que hé de dormirme en ella los hombres no supieron,

y que hemos de soñar sobre la misma almohada.

Te acostaré en la tierra soleada con una

dulcedumbre de madre para el hijo dormido,

y la tierra há de hacerse suavidades de cuna

al recibir tu cuerpo de niño dolorido…»

Como se pode ler na página 81 e seguintes do livro que uso: Gabriela Mistral. Poesias Completas, Andrés Bello, 2001, Santiago do Chile.

A morte do seu amor, leva-a primeiro a ganhar a vida como professora interina rural, de rapazes e raparigas, por vezes mais velhos que ela. Repara que a sua vocação é o ensino, em 1910 gradua-se como Maestra em Santiago e apresenta, sob pseudónimo, os seus poemas aos Jogos Florais de Santiago, em 1914, sendo-lhe atribuído o primeiro lugar, com direito a medalha de ouro, dinheiro, coroa de laurel e Diploma. Era professora interina de Castelhano no Liceu de Raparigas da Província de los Andes. Não assiste à entrega do prémio, mas estava presente de corpo e alma no meio do público. Gabriela Mistral é chamada várias vezes ao palco, mas como era conhecida como Lucila Godoy, ninguém lhe diz nada. Aliás, já tinha escrito textos com esse nome no jornal de Elqui e de Vicuña: ninguém sabia quem era, nem a sua própria mãe com quem morou até à data da sua morte (1929).

Em Los Andes conhece um colega que ensinava de dia e estudava Direito à noite, Pedro Aguirre Cerda, mais tarde Presidente do Chile, tornando-se, juntamente com Juanita, mulher de Pedro, grandes amigos. Por ser docente interina, esteve em Los Andes apenas seis anos. Incentivada pelos amigos a sair do Chile, que consideravam que a sua escrita nunca seria ai compreendida, percorre o país a ensinar: Traiguén,

Parral, Punta Arenas, no Sul do Sul do Chile, Temuco e Santiago.

Os seus livros são publicados no estrangeiro por iniciativa de Federico de Onís, do Instituto Hispânico dos EUA, em 1922 surge o primeiro: Desolación, sob o pseudónimo de Gabriela Mistral. Os melhores romancistas e críticos chilenos querem saber de quem se trata, mas ela nada diz e proíbe até os seus poucos amigos de desvendarem o segredo, o que lhes proporcionará situações divertidas. Ao ser nomeada para Directora do Liceu de Raparigas de Punta Arenas, apresenta-se ao delegado escolar como Gabriela Mistral, recebendo como resposta que o cargo é para Lucila Godoy, ao que ela retorquiu esclarecendo: essa sou eu! Contudo, face ao desconhecimento do delegado escolar, foi necessária a intervenção do Ministro da Educação, Pedro Aguirre Cerda, para desfazer o mal entendido e ser aceite no seu cargo. Outra circunstância na sua vida, teve origem em Parral quando foi professora de Neftalí, neto do latifundiário das terras, da família Reyes Basualto, anos mais tarde, nomeada Consulesa do Chile em Itália, o seu antigo estudante, agora expatriado, procurou-a, fugindo da matança organizada pelo Presidente do Chile, González Videla, chamado o traidor, porque depois do apoio que lhe foi dado por radicais e comunistas, começou, organizada e sistematicamente, a matá-los. O Senador Reyes procurou, e obteve, asilo em Itália por obra de Gabriela Mistral. Este Senador era poeta e tinha por nome (pseudónimo) Pablo Neruda. A sua estada em Itália encontra-se narrada no Filme O Carteiro de Pablo Neruda de 1995. Os (nossos) dois Prémios Nobel do Chile em literatura ajudaram-se mutuamente.

A fama de Gabriela Mistral com o seu livro Desolación, levou-a a publicar muitos outros, até ao ponto de deixar o ensino e sair do Chile, passando a ser (nossa) consulesa em vários países da Europa. Era o plano para ganhar o Prémio Nobel de Literatura. Andou entre a Itália, França, Portugal e Espanha, mas teve que fugir por causa da guerra. O Prémio foi suspenso, tornou a ser outorgado depois da Guerra. Mistral estava no Brasil e um nosso tio foi-lhe comunicar a Petrópolis, onde residia, o triunfo… Na sua arrogância, diz o tio, o seu comentário foi uma frase: é natural, a quem outro, se não a mim!

Após vários cargos diplomáticos, regressa ao Chile em 1938 para participar, como membro activo, na Candidatura do seu amigo Pedro Aguirre Cerda, que ganha, destacando-a, posteriormente, na Europa e nos Estados Unidos. Viveu a guerra civil espanhola e, em 1951, foi-lhe entregue o prémio nacional de literatura do Chile.

Em 1953 é nomeada Consulesa do Chile em Nova Iorque, onde participa na Assembleia das Nações Unidas. Em 1954, é-lhe tributada uma homenagem oficial, que conta com a sua presença. Regressa aos Estados Unidos.

Em 1957, depois de prolongada doença, faleceu, a 10 de Janeiro, no General Hospital de Hempstead, Nova Iorque.

Os seus restos mortais recebem a homenagem do povo do Chile, declarando-se três dias de luto oficial. Os funerais constituem uma apoteose. É-lhe rendida homenagem em todo o Continente e na maior parte dos países do mundo.

Gabriela Mistral era quem sabia escrever:

Piececitos de niño, azulosos de frío.

Como os ven e os não cubrem, Dios mio!

Comments

  1. Carlos Loures says:

    Gabriela Mistral é um grande poetisa. Quem a puder ler em castelhano, deve fazê-lo. Sei que há pelo menos uma tradução em português de Portugal (salvo erro, editado pela Assírio & Alvim). No entanto, julgo que a tradução da poetisa brasileira Henriqueta Lisboa, é de elevada qualidade. Henriqueta Lisboa esteve ligada à célebre Semana de Arte Moderna de São Paulo, em 1922, incontornável marco na história da literatura modernista em língua portuguesa. Belo texto, Professor Iturra. Belo e necessário, pois eu creio que Gabriela Mistral, bem conhecida pelas elites intelectuais, é uma desconhecida para o grande público. Serviço público, diria o Luís Moreira.

  2. Raúl Iturra says:

    Escrevi este texto como homenagem a uma grande compatriota. Grande pelo tamanho do seu corpo, grande por ter sabido ultrapassar os disabores da vida, grande por ter sabido ser docente de peqnas e púberes, grande por ter sabido suportar a falta de amor por causa da morte do seu namorado. Grande, porque sem ultrapassar todoas ests tropelias, nunca teria escrito os livros que a levaram ao Olimpo dos escritores. Grande,enfim, por ter sido uma mulher radical, uma verdadeira socialista que soube apoiar aos meterialistas históricos e por ter sabido travar esse mau humor, parte da sua vida. Era uma mulher simples e bem disposta. O dia do seu falecimento, foi a perca de uma mulher muito Senhora. Grande, porque a sua escrita dá-nos vida

  3. Raúl Iturra says:

    Meu Caro escritor, editor e Amigo íntimo, que acopanha as tristezas da vida e outras saladas pela que os dois temos vivido e sofrido. Não quiz responder ao texto junto aos outros, porque na verdade Lucila era e é mal conhecida. Não por causa da sua poesia, mas sim pela sua humildade. Confesso que, como diz Volodia Teitelboim no seu livro de 1991, 2a edição 1996: Gabriela Mistral. Pública y Privada, Editorial Sudamericana, Santiago, não quiz comentar esse desconhecimento da sua obra. Desconhecimento devido a sua humildade e falta de propaganda, Acrescento que, na primeira das duas visitas que fez ao Chile, foi precisso procurar livros em Castelhano e imprimir a correr: ela vem e não conhecemos a sua obra! Era 1954 o prémio nacional do Chile pela sua obra, prémio promovido pelas mulheres do país. Foi recebida pelo antigo ditador do Chile dos anos 20, que em 1929 lhe retirara a sua jubilação: só gastamos no que rende, disse o brutal general ditador, e que era agora Presidente legalmente eleito, o General Carlos Ibañez del Campo, que nunca lia e não conhecia a O nem por redonda que era. Ai entrei eu para a orientar. Foram curtos dias. Nunca nais voltou, apenas após o seu falecimento. No meu país chamam a este facto: ” o pago do Chile…” Foi igual com Cláudio Arrau e o tenor de fama universal, Ramón Vinay, que nem vale a pena mencionar..

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